Falsas penitências – do Facebook à União Europeia

Neste quadro dilatório e enganador, Zuckerberg não será a pior das ovelhas negras. A velha Europa não sai incólume.

“A minha memória, senhor, é como um depósito de lixo”
Irineu Funes (in Funes, o Memorioso, conto de Jorge Luis Borges)

A permanente cumplicidade do Facebook com a não protecção dos dados dos seus utilizadores e com a exposição da privacidade dos cidadãos deste mundo tem sido uma das marcas dominantes da breve história desta plataforma que paradoxalmente domina já a Net. História que tem sido pontuada, também regularmente, com contínuos pedidos de desculpa e cartas de penitência de Mark Zuckerberg ao longo destes 15 anos de Facebook.

Zuckerberg tem sido assim um permanente arrependido, que se confessa primeiro, presume que expia o pecado, para se distrair logo a seguir, deixando a reparação do mal a quem de direito – leia-se: Federal Trade Commission e Departamento do Comércio dos EUA, Federal Communications Commission e União Europeia. Entidades que, certamente, não conseguiram ser bons, ou mesmo razoáveis catequistas do rapaz de Harvard.

A sua Via Crúcis trouxe-o agora a Bruxelas, ao Olimpo pagão da velha e burocrata Europa, qual bem-aventurado nobre de corda ao pescoço, penitenciando-se perante tudo e todos. Breve prelecção, perguntas cirúrgicas a responder por escrito, que o avião de regresso estava à espera...

Desmontada a tenda, pouco fica.

Que não, que as fake news e os factos alternativos não voltarão a levar um qualquer Trump ao colo; que os cidadãos europeus e todos os outros poderão ficar tranquilos que os seus dados jamais voltarão a cair nas mãos de uma qualquer Cambridge Analytica; que não, que os falsos perfis e as falsas contas estão já entregues às ferramentas da Inteligência Artificial, espécie de novo exorcista que fará a limpeza da paisagem e dos danos. E sorri...

Mas... será que todos nós descansamos? Será que descansamos, nós, europeus, com essa fantástica ferramenta chamada “Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados”, que, aliás, Zuckerberg diz que levará a todos os cantos do mundo? Ficaremos para ver...

Convém, no entanto, não perder de vista o como chegámos até aqui, o contexto europeu – da UE –, em particular. Da desregulação do Facebook ao mito da hiperregulação da UE vai apenas um pequeno passo. Um rápido flash-back:

Em 2010, o Facebook avançava com soluções para simplificar a configuração da privacidade após um movimento concertado entre os membros para o abandono da rede, que ficou então conhecido pelo Quit Facebook Day.

Na Europa, a CE avançava com uma Consulta Pública (2010) sobre "o direito das pessoas impedirem a continuação do tratamento dos respectivos dados” e de “os mesmos serem apagados, quando deixarem de ser necessários para fins legítimos". Pouco depois, a comissária Viviane Reding (2011) apresentava a reforma das regras de protecção de dados na União Europeia como prioridade legislativa. Reding considerava que este direito era particularmente importante no contexto das rápidas mudanças tecnológicas que permitiam a partilha de informações pessoais a uma escala sem precedentes através de sofisticadas ferramentas de colecta automática de dados.

Na perspectiva da CE, o reforço do controlo dos indivíduos sobre os seus próprios dados deveria assentar em quatro pilares: o direito a ser esquecido, o que significa que as pessoas têm o direito de retirar o seu consentimento para o processamento dos seus dados; a transparência, fundamental para a construção de confiança na Internet e para uma maior clareza no âmbito dos registos em redes sociais; a privacidade por defeito, porque as configurações de privacidade exigem, na maior parte dos casos, um esforço operacional considerável; e a protecção, independentemente do local dos dados, o que significa que os padrões de privacidade devem respeitar as normas da UE e ser aplicados independentemente da localização geográfica do prestador do serviço.

A verdade é que em matéria de protecção de dados pessoais a Directiva 95/46/CE continuava a ser o texto de referência. Em Janeiro de 2012, a Comissão Europeia propunha uma reforma geral das regras em vigor na UE. A conclusão desta reforma seria uma prioridade política para... 2015. O objectivo do novo conjunto de regras era restituir aos cidadãos o controlo sobre os seus dados pessoais. A verdade é que só no final de 2015 é que o Parlamento Europeu e o Conselho chegaram a acordo sobre a reforma da protecção de dados proposta pela Comissão. Tinham passado cinco anos...

Entretanto, a 2 de Fevereiro de 2016, a Comissão Europeia e o Departamento de Comércio dos EUA celebram um acordo político sobre um novo quadro para o intercâmbio transatlântico de dados pessoais para fins comerciais sobre a Protecção de Privacidade (IP/16/216), sendo que este enquadramento protegeria os direitos fundamentais dos europeus no contexto da transferência de dados para os Estados Unidos. A nova Directiva entrava em vigor em 24 de Maio de 2016 e os Estados-membros da UE teriam de a transpor para o respectivo direito nacional e aplicá-la a partir de 25 de Maio de 2018, oito anos depois da abertura da Consulta Pública...

Neste quadro dilatório e enganador, Zuckerberg não será a pior das ovelhas negras. A velha Europa não sai incólume. Até porque tem atrás de si um lastro pouco edificante. O histórico da Comissão (menos do Parlamento Europeu) desde o Livro Verde do Audiovisual (1984) em matéria de políticas para o audiovisual público europeu, em particular, têm sido bem mais nocivas para a Europa do que as desventuras do jovem Zuckerberg e da sua plataforma. Se Trump fica com uma dívida para com Zuckerberg, Berlusconi, por exemplo, tem-na para com a Comissão Europeia e a sua política audiovisual. Resta saber qual deles venderá melhor os próximos populistas... Faites vos jeux!

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