"Mono do Rato", uma nulidade anunciada?

Uma sindicância que apontava violações do PDM, um parecer jurídico que não conferia direitos, um "compromisso" não cumprido. Agora, o Ministério Público pede a nulidade de todo o processo. A história do chamado “mono do Rato” é marcada por avanços, recuos e muitas dúvidas.

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O Ministério Público pediu ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que declare a nulidade do licenciamento da construção do chamado "mono do Rato", alegando que o processo urbanístico tem “várias nulidades”.

A acção que a Procuradoria-Geral da República interpôs contra a câmara de Lisboa teve em conta "questões jurídicas relacionadas com a insusceptibilidade de afectação do edifício à actividade hoteleira, a reconversão do espaço público, o acentuar do isolamento da vizinha sinagoga, bem como matéria respeitante à acessibilidade de pessoas com deficiência e mobilidade reduzida", diz um comunicado enviado às redacções.

O comunicado menciona especificamente o “acto de licenciamento de obra de construção”, que ficou concluído em 2010. Na reunião de câmara desta quarta-feira, o vereador do Urbanismo disse que a acção do Ministério Público “é um extenso documento que, essencialmente, levanta duas questões: uma que impugna o acto de licenciamento de 2005 e outra que condena o município a declarar a nulidade do processo”. Na verdade, em 2005 não houve licenciamento, apenas aprovação do projecto de arquitectura.

O documento está a ser avaliado pelo departamento jurídico “para ser devidamente respondido”, disse ainda Manuel Salgado. A câmara de Lisboa e o promotor (a Aldiniz, Sociedade de Gestão imobiliária) têm agora oportunidade de se pronunciar sobre o assunto.

No local, situado na esquina do Largo do Rato com as ruas Alexandre Herculano e do Salitre, os trabalhos foram suspensos por ordem judicial. PCP, Bloco de Esquerda e PSD congratularam-se com a decisão do Ministério Público.

Um processo complexo, repleto de dúvidas

A história do chamado “mono do Rato” é marcada por avanços, recuos e muitas dúvidas.

O projecto de arquitectura, de Frederico Valsassina e Manuel Aires Mateus, foi aprovado em 2005 por despacho da então vereadora do Urbanismo, Eduarda Napoleão (PSD), um ano depois de ter sido chumbado um Pedido de Informação Prévia (PIP) para o mesmo local.

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O lote hoje, já depois de os edifícios terem sido demolidos Miguel Manso

Apesar dessa aprovação inicial, só em 2010, já com um executivo camarário de António Costa, é que a obra obteve o licenciamento final. E depois passaram seis anos até que fosse emitido o alvará de construção. Ora, a lei estabelece um prazo máximo de dois anos entre estes dois momentos – o que significa que o promotor pode já não ter direito legal a construir.

A aprovação da obra aconteceu numa reunião camarária em Dezembro de 2010, sob proposta do vereador Manuel Salgado. Em Maio do ano seguinte, a Aldiniz pediu a prorrogação da entrega de elementos para emissão do alvará, que lhe foi concedida em Novembro de 2011. O alvará só veio a ser emitido em Junho de 2016.

O Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) diz, no seu artigo 76º, que os promotores têm um ano, a contar da data em que são informados da aprovação do processo urbanístico, para pedir à câmara a emissão do alvará. Diz também que a autarquia pode autorizar o alargamento deste prazo “por uma única vez”. Ou seja: no máximo, o alvará tem de ser pedido até dois anos depois de a obra ser aprovada. Neste caso, uma vez que o promotor pediu uma prorrogação em 2011, teria de pedir o alvará em 2012.

Se pediu, essa informação não consta no processo urbanístico nem é referida numa carta que Manuel Salgado enviou à presidente da Assembleia Municipal de Lisboa no início de Abril. Nessa missiva são elencados os principais momentos do complexo processo, mas não é dada qualquer justificação para o hiato de seis anos. O PÚBLICO vem questionando a câmara sobre este assunto há uma semana, mas não obteve respostas até agora.

O tempo decorrido entre os dois momentos, aparentemente ilegal, é um dos argumentos invocados pelo conjunto de cidadãos que lançou a iniciativa “Todos contra o mono do Rato”, com a qual têm entupido as caixas de e-mail da autarquia, pedindo a nulidade de todo o processo.

Direitos adquiridos?

Há mais coisas por explicar. Fernando Medina tem dito (fê-lo ainda há um mês na última reunião pública da câmara) e Manuel Salgado escreveu que “existem direitos adquiridos pelo promotor” por causa de o projecto de arquitectura ter sido aprovado em 2005. O presidente da câmara disse mesmo que “a câmara se confrontou em 2010 com um promotor com direitos que foram dados em 2005”.

Mas desde Outubro de 2008 que a autarquia tem um parecer do seu departamento jurídico que contraria esta versão. “A aprovação do projecto de arquitectura não forma na esfera jurídica da requerente [a Aldiniz] o direito a construir, constituindo sim um acto preparatório da decisão final de deferimento que, por qualquer outra razão, poderá vir ou não a ser proferido”, lê-se no parecer. “Certo é que, perante um acto de aprovação de arquitectura, sempre subsistem para o particular algumas expectativas em ver o seu pedido de licenciamento definitivamente aceite pela edilidade”, diz ainda o documento.

O departamento jurídico da câmara explica que, uma vez aprovado o projecto arquitectónico, a aprovação já não pode ser posta em causa “à luz dos instrumentos de gestão territorial em vigor”, nem com base na “estética da edificação” ou na “sua inserção no ambiente urbano”. A advogada que assina o parecer escreve, por isso, que caso a câmara queira não licenciar a obra, tem de haver “cautela na fundamentação do indeferimento”.

Em Outubro de 2008, quando o departamento jurídico se pronunciou, a câmara já tinha rejeitado uma vez o pedido de licenciamento (em Julho desse ano). A Aldiniz veio então alegar a ilegalidade do chumbo, por este “padecer de total falta de fundamentação” e por considerar que a aprovação da arquitectura, em 2005, era “constitutiva de direitos”.

A autarquia rejeitou os argumentos do promotor, mas também considerou inválidos os fundamentos usados pelos vereadores para votarem contra. Por isso, a proposta de licenciamento foi novamente a reunião de câmara – e novamente foi chumbada. Foi a 12 de Novembro de 2008.

O “compromisso”

Em Maio do ano seguinte, a Aldiniz impugnou o chumbo do licenciamento, com uma acção no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, argumentando que “não lhe tinha sido dada oportunidade para se pronunciar sobre os novos fundamentos que sustentaram a rejeição da proposta”. A câmara reconheceu o erro e, em Março de 2010, anulou o chumbo proferido em Novembro de 2008.

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A versão do projecto em 2010 DR

Mas a acção judicial, que visava a câmara e os vereadores individualmente, continuou a correr no tribunal. Por isso, em data não especificada, autarquia e Aldiniz sentaram-se à mesa para assinar um “compromisso” que suspendeu a acção. Através desse documento, o promotor comprometeu-se a apresentar uma alteração ao projecto de arquitectura desenhado por Frederico Valsassina e Manuel Aires Mateus. Caso a alteração não fosse aprovada, a acção judicial, entretanto suspensa, voltaria a andar.

A alteração chegou em Agosto de 2010, mas não foi aprovada nem rejeitada. “A câmara reunida entendeu não proceder à reapreciação da arquitectura, uma vez que esta já tinha sido anteriormente aprovada, e que deveria ser retomado o processo inicial, na fase em que este se encontrava, isto é, com proposta de deferimento”, lê-se no texto que foi a votos em Dezembro de 2010 – o que efectivamente licenciou a obra.

Uma vez que o “compromisso” só previa explicitamente a aprovação ou a rejeição das alterações apresentadas, o PÚBLICO quis perceber por que motivo os vereadores tinham decidido não se pronunciar, mas também essa pergunta ficou por responder. Os documentos do processo mostram que os serviços de Urbanismo deram parecer negativo à aprovação das alterações.

O nascimento do “mono”

Chegou-se assim a 22 de Dezembro de 2010, data em que Manuel Salgado levou a reunião de câmara uma proposta de licenciamento da obra que tinha por base o projecto de 2005. Aí se diz que a aprovação dessa proposta teria “os mesmos efeitos previstos no ‘compromisso’”, ou seja, “a desistência da acção judicial” interposta pela Aldiniz.

O documento recebeu sete votos a favor e oito abstenções. Ruben de Carvalho, então vereador do PCP, e Helena Roseta, então vereadora independente do grupo Cidadãos por Lisboa, não participaram na votação.

Foi por essa altura que foi cunhado o termo depreciativo “mono do Rato” e que se gerou uma grande controvérsia pública sobre o projecto, que teve eco em inúmeros artigos de opinião na imprensa e na constituição da Associação Salvem o Largo do Rato, que interpôs uma providência cautelar que ainda hoje aguarda desfecho.

Muito tempo passou entretanto, de tal forma que já se tinha formado no espírito de muitos a convicção de que o projecto nunca arrancaria. Mas a colocação de tapumes em redor das velhas casas existentes no Rato, em Fevereiro deste ano, trouxe o assunto de novo à ribalta.

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O futuro do largo está agora num impasse Miguel Manso

Já com o alvará emitido em Junho de 2016, a Aldiniz mudou de donos e passou a estar associada a um grupo hoteleiro. Em Novembro do ano passado, entregou à câmara um pedido para alterar o projecto – em vez de ter habitação e comércio, o edifício passaria a ser um hotel –, mas ele não chegou a ser analisado.

Fernando Medina disse em Fevereiro que ia “tentar um diálogo com o promotor para encontrar uma solução que minore o impacto” do edifício no largo. O autarca afirmou que até gostava do projecto, mas reconheceu que “cria uma ruptura naquele local”.

Isso mesmo escreveu a procuradora encarregada pela sindicância aos serviços camarários de Urbanismo, realizada em 2007. Apesar de o presidente da câmara ter dito, no mês passado, que “nenhuma ilegalidade foi detectada na decisão” de aprovar o projecto de arquitectura em 2005, o relatório da sindicância diz que o projecto violava quatro artigos do Plano Director Municipal (PDM) então em vigor, bem como enclausurava a sinagoga ali ao lado. O “ o acentuar do isolamento da vizinha sinagoga” é agora um dos motivos que leva o Ministério Público a pedir a nulidade do licenciamento.

O PÚBLICO não só não obteve respostas da autarquia, como não conseguiu entrar em contacto com a Aldiniz.

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