A bondade não pode ser um crime punível com pena de prisão

Despenalizar a morte medicamente assistida é defender um direito humano fundamental que está por cumprir.

Ao longo destes mais de dois anos não faltou debate nem espaço para reflexão. Os argumentos são conhecidos e este é o tempo da decisão. Quem hoje defende que a discussão continua por fazer apenas está a esconder o seu verdadeiro objectivo: o de impedir que ajudar a morrer um doente terminal envolvido no maior sofrimento deixe de ser motivo de prisão.

Defender a despenalização da eutanásia é tomar partido por não se punir a antecipação voluntária da morte a pedido em contextos muito especiais, nomeadamente em circunstâncias de sofrimento insuportável provocado por doença fatal incurável ou lesão irreversível. Impedir a despenalização da eutanásia é defender que um acto de bondade seja crime punível com pena de prisão.

Se encaramos como normal e natural o prolongamento das nossas vidas porque a ciência assim o permite, por que é que não encaramos como igualmente normal e natural que nos perguntemos em que condições aceitamos prolongar as nossas vidas? O debate sobre a morte assistida é uma discussão sobre direitos humanos de quem está no fim da linha e é um debate sobre o processo da última etapa da nossa vida: se com sofrimento agónico, atroz e intolerável ou se, pelo contrário, de forma digna, respeitosa e livre.

Definir sofrimento intolerável não é difícil, e não é verdade que todo o sofrimento seja tratável, como insistem aqueles que defendem que os cuidados paliativos são a solução para todos os casos. O sofrimento é uma experiência pessoal e intransmissível. Muito mais do que uma dor ou outro sintoma físico ou psicológico, o sofrimento é uma dependência, uma indignidade, uma ausência de ser, uma falta de sentido.

Este debate também se detém claramente na defesa da autonomia e na liberdade. Ser competente e autónomo significa também ser livre e responsável pelas suas escolhas, o que significa, também, ser-se livre de poder escolher quando e como morrer. Num Estado de Direito, deve ser permitido a cada um de nós, tanto nos aspectos mais banais como nas áreas mais íntimas da existência humana, o poder de conformar a nossa vida de acordo com as nossas próprias convicções. Cada pessoa deve ter o direito a viver de acordo com a sua visão do mundo, não devendo esta ser imposta por terceiros. Ora, na situação actual é exactamente isto que acontece: o Estado está a ditar às pessoas o modo como estas devem gerir a sua vida.

O actual modelo de acto médico, fundado na autonomia e no consentimento informado, implica que o médico informe o paciente do seu estado de saúde, discuta com ele as opções de tratamento disponíveis e tenha em conta a sua vontade sobre o destino a dar à sua vida, seja pela via da administração de um tratamento, seja, no nosso entendimento, por uma opção de morte medicamente assistida. Não estamos a defender que a vontade do paciente seja absoluta – mas sim que esta seja atendível nos casos em que alguém, de forma consciente, esclarecida, reiterada, clinicamente incurável e em sofrimento intolerável possa definir as condições que quer para a sua morte.

Uma despenalização da morte assistida não exclui nem conflitua com os cuidados paliativos. Ainda que estes devam ser valorizados e continuamente reforçados – e sim, há que reconhecer que os cuidados paliativos têm que ser fortalecidos no nosso país –, a verdade é que não eliminam por completo o sofrimento em todos os doentes. Para estes doentes, o Estado deve ter uma resposta.

Vejo a despenalização e regulamentação da morte assistida como uma expressão concreta dos direitos individuais à autonomia e à liberdade de convicção e de consciência. Aquilo que temos que perguntar é: que tipo de sociedade queremos? Ora, eu defendo uma sociedade aberta e evoluída, onde todos possam exercer os seus direitos e viver de acordo com as suas convicções e mundivisões, de forma autónoma e livre.

Despenalizar a morte medicamente assistida é defender um direito humano fundamental que está por cumprir. Uma classe política evoluída está disponível para integrar novas preocupações sociais e assentar as discussões em perspectivas mais humanistas.

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