“Falta um sentido de descoberta e de surpresa na fotografia”

Fundador da Procur.arte, associação que concebeu e lidera a plataforma de fotografia Parallel, diz que o circuito resiste à entrada de novos artistas. E está a trabalhar contra isso.

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Para Nuno Ricou Salgado, as insttuições acusam muito a pressão “dos números” Eduardo Amaro

Foi quando andava Europa fora com o projecto Flâneur (urbanismo, deambulação, fotografia e cidade) que Nuno Ricou Salgado foi confirmando um estado de coisas “preocupante” no circuito artístico ligado à fotografia: os gargalos estão cada vez mais apertados para os artistas que tentam mostrar novos trabalhos ou para os novos curadores que querem criar discurso a partir deles. O fundador da Procur.arte, a associação que concebeu e lidera a plataforma de fotografia Parallel, notou, sobretudo, que há pouco quem arrisque. Daqui a quatro ano, quando terminar o Parallel, este produtor cultural que gosta de dar alternativas aos circuitos instituídos diz que será possível “sentir o respirar da Europa e o pulsar da nova criação artística”.

A plataforma Parallel envolve 18 instituições ligadas à fotografia de 16 países. Imagino que a montagem desta rede de compromissos tenha sido um trabalho complexo. Como começou?
Na [associação] Procur.arte temos desenvolvido projectos que tentam fazer chegar ao mundo das artes autores emergentes. É o tipo de trabalho que já fazemos há alguns anos. Enquanto desenvolvíamos no terreno o projecto Flâneur, entre 2015 e 2017, apercebemo-nos de vários problemas no circuito artístico, que acaba por desenvolver vários gargalos, de criar dificuldades na dinâmica expositiva, na programação e na relação entre novos artistas e os vários protagonistas desse sistema. Perante esta assunção, fomos discutindo formas de contornar o estado de coisas, de encontrar novas abordagens. Percebemos que, em termos de calendário, havia a possibilidade de nos candidatarmos a um projecto da Comissão Europeia que tivesse a ideia de plataforma europeia como base. Em termos gerais, a Parallel tem como objectivo fazer chegar novos valores aos diferentes mercados das artes. Existem já plataformas deste tipo ligadas às artes performativas e ao canto, por exemplo, mas não havia nenhuma ligada à fotografia. Antes de candidatarmos a Parallel, estivemos a marinar a ideia durante um ano e meio, ao mesmo tempo que íamos falando com parceiros que estivessem na nossa sintonia e que partilhassem as mesmas preocupações. Foi um projecto muito pensado, quer internamente quer com outros intervenientes.

E esse problema da falta de ligação entre quem está a começar e quem tem o controlo do mercado é transversal?
Sim. Por questões várias, há uma repetição dos nomes que estão no circuito. Preocupa-nos que os artistas que estão a começar não encontrem interlocutores nas galerias, nos museus e noutras instituições. Mas preocupa-nos ainda mais a ausência de risco. O risco é muito importante na criação — é ele que não nos deixa ficar sentados confortavelmente à espera que aquilo que já funcionou bem volte a funcionar da mesma maneira. Há pouca gente a arriscar mostrar trabalhos novos.

As instituições ligadas à fotografia estão acomodadas?
Não todas. Não podemos generalizar. Mas há um medo de correr riscos. Há muita pressão por causa dos números, das bilheteiras. É também por causa disso que os artistas emergentes têm dificuldade em apresentar os seus trabalhos, de os mostrar a curadores. Se estes não vierem trabalhos novos também não vão programá-los, porque simplesmente não os viram, não os conhecem.

Cria-se um círculo vicioso?
E alguma entropia. É uma espécie de ‘mais do mesmo’, que a médio e longo prazo cria normalização da oferta cultural e dos discursos visuais. Falta um sentido de descoberta e de surpresa na fotografia.

No caso da fotografia, a dificuldade de descobrir novos autores parece-me ainda maior, porque a estratificação geracional se faz sentir com muita força. Concorda?
Sim. Há uma dinâmica muito ligada às várias escolas de países com maior capacidade de projecção. Isto significa que o panorama fica menos rico, menos variado. Obviamente que os grandes nomes, os nomes referenciais, têm de continuar a ser expostos — a Paralallel não existe para contrariar isso. Mas é preciso haver mais diversidade na oferta, e essa é, para mim, a principal questão. Temos de ser surpreendidos, ver trabalhos que estimulem novas questões. Se a criação artística não tiver esse risco, se for acomodada e previsível, não tem interesse. Brian Griffin, um grande fotógrafo inglês de que gosto muito, costuma dizer que fica tudo too boring [demasiado aborrecido]. E para não ficar tudo too boring é preciso descobrir novas linguagens. A Parallel passa muito por isso – trazer sangue novo ao mercado, às artes. E quebrar as regras e os circuitos instituídos. Por um lado, tentamos pôr novos artistas e novos curadores a falar com os museus, galerias e festivais que são membros da Parallel. Mas há outro aspecto que considero importante e que passa por tentar criar outras dinâmicas de trabalho. A relação entre os artistas e os curadores é normalmente muito hierarquizada, com códigos muito fechados e dinâmicas de poder muito enraizadas — não precisa de ser assim. Tentamos que na Parallel essa relação seja muito mais horizontal e mais facilitada, pondo os artistas e curadores a trabalhar em conjunto; fazendo que se encontrem no mesmo espaço físico e temporal; pondo os curadores seniores a apresentarem-se a artistas emergentes, tentando quebrar alguns níveis de poder.

Acredita que isso já aconteceu nas duas exposições organizadas no seio da Parallel?
Acho que sim. Sentimos que esse é um problema que existe de uma forma muito marcante. O posicionamento dos artistas perante os curadores passa por essa hierarquia que por vezes é falsa. Por outro lado, ao colocarmos artistas e curadores juntos, criando um momento de cumplicidade e contaminação, é uma relação que é diferente e cria alguma proximidade. Depois de já ter feitos duas exposições posso garantir pelo menos uma coisa: é que se estabeleceu um laço de amizade entre todos os artistas e curadores. Entre os 23 artistas seleccionados para esta primeira fase do projecto há uma coesão no grupo. São pessoas que vêm de 16 países, que nunca se tinham visto antes e, ainda assim, criaram um grupo de interajuda que nos parece bastante coeso.
Na escolha dos curadores emergentes houve a preocupação de os orientar de forma a que não fossem uma extensão das instituições que os apontam. É obrigatório que sejam pessoas foram do circuito estabelecido, para o próprio circuito se possa renovar. Na arte, como em outros circuitos, se não houver renovação deixa de haver relevância.

A diversidade de países envolvidos é imensa. Isso cria dificuldades?
Creio que isso é uma das riquezas do projecto. Há dinâmicas completamente diferentes quando se trabalha com países como a Lituânia, a Inglaterra, a Itália ou a França, quer do ponto de vista organizacional como relacional. A gestão desta rede é, por si, um desafio grande.

É um projecto a quatro anos…
Sim. Esse tempo permite-nos programar a longo prazo de uma forma muito mais clara. O projecto é co-financiado. Nós temos que angariar 20% do orçamento. O limite máximo de co-financiamento é de 500 mil euros por ano. Para além desse valor, temos que angariar mais 150 mil euros por ano. Parte deste dinheiro é para a gestão do projecto e a outra parte é para os nossos parceiros, para fazerem as acções em cada um dos 16 países. Há uma lógica de descentralização. Não queremos que as coisas aconteçam todas em Portugal.

Este é o maior projecto em que a Procur.arte se envolveu?
Sem dúvida. É uma rede muito grande. Envolve muitas pessoas, tem uma grande diversidade geográfica. Uma das principais dificuldades é o tempo em que as coisas têm que acontecer. Temos uma lógica de igualde e de proporcionalidade que faz com que tenhamos iniciativas no terreno com todos os parceiros, sejam exposições ou leituras de portfólios. Por exemplo, em Zagreb, durante o Interseccion (que conclui cada ciclo), vamos envolver cerca de 150 pessoas.

Isso significa que haverá quatro momentos de Interseccion…
Isso mesmo. Na verdade, em cada Interseccion há uma confluência de dois momentos. Por um lado, é o momento em que os artistas que já produziram trabalhos ao longo do ano anterior apresentam as suas obras, por outro é o momento em os novos artistas seleccionados apresentam o que vão querer fazer. E aqui queremos que este último grupo apresente já os seus propósitos numa lógica expositiva. Isto para contrariar métodos de apresentação habituais que são muito fugazes e superficiais, que não deixam lastro. Pensamos que seria mais interessante os artistas emergentes apresentarem os seus trabalhos já num formato expositivo. Funciona como uma antevisão do que pode vir a ser feito. E há mais tempo para ver as imagens.
Depois, em cada final de ciclo haverá também um livro, um atlas, que se debruçará mais sobre o processo, um documento onde se procurará reflectir como se chegou a cada momento.

Há artistas ou curadores portugueses envolvidos?
Sim. Um é Teo Pitela, um curador brasileiro que está a viver em Portugal. O outro é o Bruno Humberto, que vai assumir a curadoria de uma exposição no Fotofestiwal, em Lodz, na Polónia. Entre os sete artistas desta exposição está o Nuno Barroso. Teremos ainda outro artista português que foi sugerido pelo Centro Internacional das Artes José Guimarães [um dos 18 parceiros da Parallel], que é o Pedro Koch, de Peniche, que apresentará um trabalho sobre ondas no Fotofestival de Landskrona, na Suécia.
A participação de cada país é proporcional, tem de ser equilibrada. Temos 16 países e haverá, no máximo, três artistas por cada país em cada exposição.

A Parallel é uma rede de dimensão europeia liderada por Portugal. É uma situação pouco comum no meio artístico…
Portugal é normalmente um parceiro, um convidado a participar a partir desse estatuto. Aqui somos líderes. E isso, de facto, não é comum em Portugal.

E na área da fotografia também é novidade?
Sim. Mas também noutras áreas. Nunca tinha havido em Portugal uma candidatura às linhas de apoio de plataformas para a posição de liderança. É uma candidatura muito complexa que abre de quatro em quatro anos e requer uma estrutura mínima. É uma candidatura que não se pode fazer do pé para mão.

Quantas pessoas trabalham permanente na Procurarte neste momento?
Quatro. E mais duas que trabalham pontualmente, mas é uma estrutura muito pequena.

Qual é valor total do financiamento?
Dois milhões de euros. Em termos de execução deve ficar à volta dos 2,4 milhões, valor que inclui os tais 20% que nos compete angariar.

Portugal apoiou esta candidatura?
Não, não tivemos nenhum apoio do Ministério [da Cultura]. Só ao nível das autarquias - Lisboa e Torres Vedras - para acções pontuais. Os países com projectos semelhantes aprovados apoiam as associações que a eles concorreram, porque há a noção de que servem de afirmação, de soft power do seu país. O projecto foi apresentado directamente à Comissão Europeia. Tivemos o apoio do ponto de contacto da comissão em Portugal. E a ajuda deles foi muito importante. A medição do seu sucesso também pela aprovação de ideias como a nossa. Temos de mudar o chip da nossa postura. E olhar não apenas para Portugal, mas para o resto da Europa. A Parallel é uma plataforma com uma dimensão e um olhar transversal a nível europeu, mas é feita a partir de Portugal.

E isso dá a esta rede alguma característica particular? Ou seria igual a liderar a partir de qualquer outro país da UE?
Sobre os outros não falo. Mas os portugueses têm claramente uma capacidade de criar diálogo, de criar pontes.

Isso não é só uma ideia feita?
Não me parece. Da minha experiência acho que isso é efectivo. Creio que sabemos comunicar naturalmente com os outros. E sabemos chegar a denominadores comuns. Cada país tem as suas dinâmicas e as suas idiossincrasias. Há países, por exemplo, que põe a tónica no lado mais comercial. Há outros com posturas mais individualistas e outros, ainda, que se bastam a si próprios. Se fôssemos todos iguais era uma chatice.

Mas dentro nessa dinâmica global, que regra geral abafa os mais pequenos, não sente que ainda é preciso promover os artistas portugueses?
Acho que cada vez mais a dinâmica tem de ser global. Mas não posso deixar de considerar que é preciso promover os artistas portugueses. Creio que o que falta é uma visão política, eles são pouco apoiados. Mas não sinto que estejamos a fazer menos ou pior do que outros. Em Portugal, temos claramente um problema financeiro, temos pouco dinheiro. Mas, ao mesmo tempo, temos muito engenho, conseguimos fazer muito com pouco.

Não deixa de ser irónico ver em Inglaterra uma exposição feita a partir de uma rede europeia em tempos de “brexit”…
Todos os ingleses com quem temos trabalhado sentem uma vergonha enorme com o que se passou em Inglaterra a propósito do “brexit”. A história tem o seu ritmo, o tempo o dirá. Certo é que os parceiros ingleses da Parallel têm tido uma postura muito aberta. Mas estão a antecipar problemas a nível estrutural, financeiro e logístico. Não sabem bem com linhas se vão coser.

Quando aconteceu o “brexit”, o Festival Format já fazia parte do vosso rol de parceiros?
Trabalhamos com o Format há mais tempo, desde 2011, mas quando surgiu a plataforma Parallel o “brexit” já tinha acontecido. Até agora, não existe nenhuma indicação de como lidar com esta situação. Os projectos que foram aprovados mantém a sua linha, assim como os financiamentos.

Gostaria de chegar ao fim destes quatro anos da Parallel e ter conseguido o quê?
Marcar a diferença. E deixar lastro. Até ao final vamos trabalhar com cerca de 150 artistas. Se conseguirmos deixar alguns nomes estabelecidos e uma forma diferente de trabalhar era bom. Estamos a trabalhar com o cutting edge da criação europeia, com aqueles que estão mesmo no início, com aqueles que podem vir a ser os melhores. É um privilégio trabalhar com artistas e curadores emergentes que daqui a dez anos estarão a expor regularmente ou a liderar grandes instituições. É muito gratificante ter podido influenciá-los positivamente. Claro que queremos também criar conteúdo relevante. Ao fim dos quatro anos, este grupo de artistas apoiados pela Parallel terá produzido mais de duas mil imagens sobre a Europa. O que significa isto? É uma visão nova e muito diversificada sobre este espaço. Faz com que possamos sentir o respirar da Europa e o pulsar da nova criação artística. Queremos apresentar coisas que não se encaixam nos modelos. No fundo, depois destes quatro anos, queremos fazer mais quatro.

Isso significa que se este modelo funcionar, vão repeti-lo?
Sim, mas vamos tentar manter alguma frescura, fazer com que não fique too boring.

O Ípsilon viajou a convite da Parallel

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