“Mãe, pode um homem ter dois pais?”

Em Furriel não é nome de pai — Os filhos que os militares portugueses deixaram na Guerra Colonial, Catarina Gomes continua a contar uma história que começou nas páginas do PÚBLICO, quebrando um tabu na sociedade portuguesa. Nas páginas deste seu novo livro percorre várias histórias, entre as quais a de Óscar Albuquerque e a sua vontade de querer conhecer o pai. O lançamento será dia 3 de Junho, às 16h00, na Feira do Livro de Lisboa, com apresentação do jornalista Ferreira Fernandes e do escritor Rui Cardoso Martins.

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Manuel Roberto

O que é que se tem vontade de fazer quando se conhece o nos­so pai, mesmo que seja ainda apenas oficialmente um “pretenso pai”? “Dar-lhe um abraço, seria o primeiro instinto, queria sen­tir o pai.” Mas não, a tia de Óscar Albuquerque, em bom rigor, a pretensa tia, foi inflexível — “Nem abraço, nem beijo. Dizes ‘bom dia’ e mais nada. Estendes-lhe a mão se ele te estender a mão, és educado.”

Embora Óscar tivesse a certeza de que aquele homem era seu pai, a palavra “pai” não lhe podia escapar. Também recebeu instruções rigorosas nesse sentido por parte da pretensa tia: “Não lhe chames pai, ainda não se sabe se ele é mesmo teu pai.”

Mentalizou-se muito para aquele momento: apertou a mão do homem, “tudo bem?”, evitando olhá-lo nos olhos. E não lhe saiu nem abraço, nem beijo, nem pai. Correu bem.

Os degraus da escadaria de mármore do Instituto de Medi­cina Legal de Lisboa são suficientemente numerosos para que Filomena Viegas, a pretensa tia, tenha tido tempo de se deleitar com a forma de andar daqueles dois homens que, após o seco cumprimento, subiram separados, um a seguir ao outro: o irmão de Filomena primeiro, Óscar a seguir.

Estão ambos de costas, não sabem que estão a ser analisados e comparados. “Viu as pernas dos dois? Só pode ser”, explicando-me que ambos as têm arqueadas, para que eu atente bem, em­bora eu nada consiga detectar. “Já viu como são iguais a andar. Só pode ser.” Serem pai e filho.

Ou talvez Filomena esteja só a profetizar aquilo que quer que seja verdade, porque só isso daria sentido a tudo o que já fez. “Felizmente há isto, para tirar dúvidas. Não há como saber a ver­dade.” Ou Óscar é filho do seu irmão e seu sobrinho. Ou não é.

A verdade vai ser extraída do interior de dois líquidos. Em menos de um mililitro de sangue e de saliva, retirado aos dois homens, está contida uma resposta.

O pretenso pai está, por ora, “despachado”, é ele quem usa o adjectivo, “estou despachado”, como se diz no final de uma obrigação. O tom ligeiro contrasta com o tanto que Óscar sentiu esta manhã. “Oxalá dê negativo”, lança à irmã, à laia de graçola, à saída do exame, “Deus queira, quem me dera”.

Informaram os pretensos sobrinho e tia de que os resultados dos testes genéticos que os dois homens vieram ali fazer, a razão por que tiveram de estar cara a cara, deverão demorar um mês a ser conhecidos, mais coisa menos coisa.

É curta e longa, a espera. Curta porque contrasta com uma vida inteira em “investigação da paternidade”, no caso de Óscar; longa porque o desenlace é sempre a parte que demora mais a chegar. A ciência chamada genética vai, então, encarregar-se de pôr fim aparente a uma história que começou quando Óscar Al­buquerque nasceu e ainda não era esse o seu nome.

Quando Adulai Seidi fez uma semana de vida, a família do pai não matou um galo. Não havia razões para festejar o nascimento, como era tradicional entre a etnia fula. A sua avó paterna, Maria­to, teve a certeza mal pousou os olhos no bebé, e disse-o direc­tamente ao filho: “Esse não é teu filho, esse é filho de branco.” A mãe acabada de o ser começou a chorar.

Este pormenor sobre o seu nascimento chegou assim a Adu­lai muito mais tarde, no meio de uma discussão com a mãe, toda ela raiva e acinte. “Ela contou para me magoar.” Foi a maneira de assinalar que com o seu nascer inaugurou o seu sofrer.

Quando a família da mãe descobriu que esta estava grávida de um militar português, apressou-se a tentar transferir a gravi­dez para um homem da comunidade, com quem foi casada de urgência. Talvez tivesse resultado, se Adulai não fosse bastante mais claro do que a mãe e o dito pai.

Foi Adulai, o menos negro dos irmãos, a razão por que, dois anos depois de nascer, a mãe e o marido se separaram. A mãe se­guiu para outro marido, e o primogénito ficou com o pai, como é costume na Guiné. “Ela assumiu que eu era filho dele, não podia ir buscar-me.”

Tal como a mãe mantinha a sua versão, o mesmo fazia o pai oficial. Na vila guineense de Ingoré, no Norte do país, Adulai era mais um dos filhos do homem de quem usava o apelido, Seidi. Mas isso era fora de portas.

Dentro de casa, a infância de Adulai Seidi lembra a da Gata Borralheira: viveu com mais quatro irmãos e um pai que sabia que o mais claro não era seu e, por isso, o maltratava. “Quem é que rou­bou a pasta de dentes?” “Foi o Adulai.” “Eu não fui.” “Toda a gente diz que foste tu.” “Toda a gente” eram os irmãos. E o pai batia-lhe. Uma vez, desapareceu dinheiro, e um dos irmãos acusou-o, notando que o vira a comprar “alguma coisa”, decerto com a quan­tia roubada. Nunca era preciso reunir grandes provas da sua culpa para, de novo, o padrasto lhe bater. Só que Adulai era uma Gata Borralheira que desconhecia que o pai era padrasto.

A vizinha da casa do lado, Sadjo Quebe, era testemunha diária dos maus-tratos tendenciosos. Bater naquele filho em particular era tão corriqueiro que ela, às vezes, intrometia-se para ralhar ao padrasto, “deixa de bater nessa criança”. “Ela defendia-me e ele pa­rava, pelo menos dessa vez. Sofria muito naquela casa.”

Foi essa vizinha que, uma vez, o chamou da rua, estava ele a jogar à bola, andaria pelos dez anos. Se penava tanto, ao menos que conhecesse a razão: “Adulai, Adulai, anda cá.” No interior da casa da mulher, resguardado dos olhares, ouviu finalmente a explicação para as injustiças domésticas que até aí pareciam sem sentido: “Aquele senhor não é teu pai, tu és filho de um tro­pa português. Aqui toda a gente conhecia o teu pai.” Foi preciso uma estranha. “Foi a única em Ingoré que me disse a verdade. Foi a primeira pessoa. Foi o meu ponto de partida.”

Conhecedor da sua origem, podia agora, em teoria, saber mais sobre o pai junto da mãe, mas “não se faz uma pergunta dessas a uma mãe. É um segredo das mães”. E nem agora, que passou dos 40 anos, Adulai chega a formular a pergunta com todas as letras. Seria algo como: “Mãe, afinal quem é o meu pai?” O mais longe que ousou ir foi contornar a questão, delicadamente: “Mãe, pode um homem ter dois pais?” Silêncio.

O antigo quartel português de Ingoré funcionava para Adu­lai e os amiguinhos como parque infantil. No intervalo das aulas, pulavam a vedação de arame farpado e subiam para os volantes das Berliets enferrujadas e sem rodas, os três canhões abandona­dos eram os escorregas, deslizavam-lhes pelos canos abaixo.

A confidência da vizinha retirou toda a ligeireza ao parque infantil. Tornou-o num sítio muito sério, especial, quase sacro — “Era o quartel do pai.” Tudo ali agora lhe fazia lembrar o des­conhecido. Os escorregas já não eram só “canhões dos tugas”, era armamento de longo alcance onde o pai talvez tivesse toca­do, porventura disparado. O desenho de um Jaguar num padrão abandonado já não era apenas um desenho, seria talvez o símbo­lo da companhia à qual o pai pertencera.

A revelação revolucionou-lhe a infância. Para Adulai, o hino do PAIGC que tinha de entoar na escola primária deixara de ser somente uma cantiga patriótica a glorificar a heróica expulsão dos colonialistas portugueses — Grilla na terra / Tugazinho na nu­ven (“Guerrilha na terra / Tugazinho nas nuvens”). “Era sobre o meu pai. Eu chorava, era o único na turma que chorava.”

Óscar ainda fica com os olhos tremeluzentes quando repete os versos em crioulo que era obrigado a cantar, em pleno fervor do ódio contra “os tugas”, no período pós-independência. O tu­gazinho, o inimigo que os patriotas tinham derrotado e expulsa­do, era o pai que ele não conhecia.

A mãe permaneceu silenciosa em relação à sua origem, mas ar­ranjou uma forma indirecta de tornar a sua história acessível. “O senhor Vítor quer falar contigo”, anunciou-lhe um dia, como se a iniciativa tivesse partido do tal Vítor.

Foi fora de casa que Adulai, de novo, se desvendou. Este Ví­tor, Dias de apelido, era um guineense ex-camarada de armas do pai, militar no lado português, que agora era jornalista da Rádio Nacional. Corroborou a vizinha: aquele padrasto não era pai. “O teu pai era meu amigo, ele foi obrigado pelo Salazar a vir para aqui.” Adulai viu no jornalista um homem esclarecido, alguém que lhe podia dar bons conselhos.

Pediu-lhe uma fotografia do homem, mas nem ele nem ninguém a tinha. Era normal. A seguir à independência, tinha-se medo de ser associado a portugueses, mesmo que fosse apenas em imagem.

Faltava-lhe a fotografia, mas Adulai tinha-se a si mesmo. “Sabes o que é uma máquina fotocopiadora?” Adulai sabia que é daquelas máquinas em que se põe um papel de um lado e sai outro papel igual do outro, “tu és tal e qual o teu pai”. “A altura é a mesma, és baixo.” “Jogas futebol?” “Sim.” “Ele também.” Adulai disse-lhe a brincar que devia ser melhor do que o pai: jogava a extremo e ponta de lança enquanto o pai, segundo Vítor, a médio-avançado. O facto de jogar à bola bem como o pai passou a ser encarado como uma marca de hereditariedade. E em tudo o que Vítor lhe dizia estava presente essa ideia: sais ao pai. E ele acreditava nisso, era reconfortante.

Nisso, Adulai fazia como outros filhos de pais portugueses desconhecidos: identificam em si sinais que atribuem a heran­ça paterna. Como Isidro Teixeira, autor de um sucesso musical do Carnaval na Guiné de há mais de 20 anos, que se descobriu, anos depois do hit, filho de um cabo corneteiro do Exército por­tuguês. Chegou-lhe às mãos uma fotografia do pai no tempo da guerra, guitarra portuguesa em riste.

Quando vi essa foto... O talento nasce da pessoa. Então gosto da música por causa do meu pai, ele sopro e cordas, eu canto. Um dia entrei numa escola de música sem razão. Saio ao meu pai.

O jornalista Vítor descreveu também a Adulai o que seriam ca­racterísticas da personalidade do pai, vagas e elogiosas (seriam verdadeiras, ou serviriam apenas para não melindrar um miúdo que, ao fim e ao cabo, nunca o iria conhecer?): era muito boa pes­soa, bem-disposto, “bazofo”, como se diz na Guiné de quem é vaidoso. Chamava-se Manuel Albuquerque. Com o nome, Adu­lai descobrira o seu norte. Sabia para onde apontar. O pai passou a ser a sua bússola de vida.

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