Uma agressão à vida, à sociedade e à medicina

Com a possibilidade da eutanásia passaremos, de facto, a viver numa outra sociedade. Introduzida a possibilidade de um médico matar um paciente, todas as restrições da lei não serão mais do que meras inconveniências circunstanciais.

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NFS - Nuno Ferreira Santos

Uma clarificação inicial obrigatória, quando falamos de eutanásia: não se está a falar daquelas situações de manutenção da vida em circunstâncias artificiais desproporcionadas, forçando a sobrevivência por meios excessivos e impondo por via tecnológica aquilo que a vida humana e a condição do corpo já dera por terminado. Não se está a falar do chamado “encarniçamento terapêutico”, que é, além de tudo o mais, uma prática condenada e punida pela deontologia médica. Na rejeição desta ideia e desta prática estamos todos de acordo. Eu seguramente não a quereria para mim nem para ninguém. Não é disto que estamos a falar quando falamos de eutanásia.

Também me parece que estamos todos de acordo – ou talvez quase todos – na noção de que não temos uma total e absoluta disponibilidade sobre a nossa vida: não me posso oferecer como escravo de alguém; não posso pagar a alguém para que me mate.

Um suicida no cimo de uma ponte não é visto como alguém exercitando a sua liberdade: é uma pessoa que deve ser travada e socorrida. Aliás, o suicídio, considerado abstractamente como uma decisão intelectual (o que é difícil de acreditar que alguma vez aconteça, mas façamos o exercício abstracto), além da destruição do próprio, contém em si a afirmação de que “a vida não vale a pena, nada vale a pena”, afirmação essa que insulta os vivos e despreza o mundo que fica; pode ter muitas explicações e atenuantes, mas não se trata certamente da “boa morte” que estamos agora a discutir. A autonomia total ao ponto da auto-destruição não é aquilo de que estamos a falar – e não precisaria sequer da proteção da lei e do apoio dos médicos.

Então a que nos referimos quando se discute a eutanásia? E o que separa os dois lados deste debate? O que nos separa tem sobretudo que ver com a dor e o sofrimento. É a imagem mental que nos atemoriza – ao leitor, e muito certamente a mim – de nos vermos um dia numa cama de hospital, em dor e sofrimento extremos, sem possibilidade de melhoria, sem saída. E que nessa situação assustadora peçamos, desesperados, a um médico ou profissional de saúde, que acabe com tudo. Que acabe já. Agora.

É uma imagem terrível. Mas esta imagem mental que todos construímos com facilidade exige uma pausa. Dor e sofrimento não são a mesma coisa. A melhor medicina consegue controlar e minorar a dor física; estar em grande dor numa cama de hospital é hoje quase sempre apenas sinal de má prática médica. A medicina paliativa tem feito tais avanços que todos sabemos que já hoje, e cada vez mais nos anos que virão, é possível assegurar conforto físico até ao final da vida. Não é a dor física o verdadeiro problema. O mesmo já não se pode dizer do sofrimento, sobretudo do sofrimento psíquico, que é um fenómeno tão variado, tão complexo e tão subjectivo, que, como sabemos, não tem de estar associado a uma situação de doença grave, nem à velhice, nem a um estado terminal. O sofrimento, e até mesmo o grande sofrimento, é uma situação humana tão comum que dificilmente se concebe uma vida humana sem ele.   

Assim, portanto, aquilo que nos separa neste debate é a ideia de que o sofrimento próprio pode tomar formas que justifiquem a morte provocada. Mais precisamente, o que estamos a discutir é a possibilidade de que um julgamento feito pelo próprio acerca da sua situação de sofrimento – julgamento feito sob os efeitos desse próprio sofrimento – possa, mesmo que com algumas restrições, converter-se num argumento de tal forma absoluto que leve à alteração total das regras fundamentais em que estabelecemos a nossa vida em sociedade, passando a admitir o que até aqui era absolutamente impensável, isto é, que um médico mate uma pessoa.

Ou seja: o que nos separa não é o reconhecimento de que podem existir situações na vida em que nos achemos um fardo insuportável para nós próprios. É uma outra coisa, e muito mais grave: o que nos separa é a reclamação, que agora é proposta, de que a lei venha a concordar com esse juízo tão extremo e tão discutível, e, com base nisso, admita que somos, de facto, um fardo insuportável, não só para nós próprios, mas para toda a sociedade (porque matar uma pessoa não é nunca um acto que envolva só o próprio).

Por muito dramática que seja a situação pessoal, parece inaceitável que uma condição individual seja suficiente para alterar um princípio humano e civilizacional tão crucial como o de “não matar”; e que seja suficiente para modificar de forma radical a natureza da profissão médica e da relação médico-paciente. Que um julgamento íntimo, sobre mim e a minha vida, se venha tornar argumento para a destruição de pilares de civilização que, bem ou mal, nos têm protegido de barbáries ainda maiores não é certamente um progresso, e dificilmente pode ser entendido como alguma forma de compaixão.

Esta é a linha de separação entre os dois lados deste debate, mas é uma linha que separa dois mundos, dois entendimentos da vida e duas formas de sociedade. Com a possibilidade da eutanásia passaremos, de facto, a viver numa outra sociedade. Introduzida a possibilidade de um médico matar um paciente, todas as restrições da lei não serão mais do que meras inconveniências circunstanciais, porque abolido o princípio fundamental da inviolabilidade da vida humana, tudo o mais se torna secundário e ajustável.

As consequências são facilmente dedutíveis, e aliás já se observam nos raríssimos países onde a eutanásia foi legalizada. Todo o incentivo para minorar o sofrimento praticamente desaparece: na verdade, a solução para o problema do sofrimento passa a ser não a eliminação do próprio sofrimento, mas sim da pessoa que sofre. Como a velhice implica quase sempre um esforço acrescido para outros, sobre todos os idosos passará a existir uma pressão, silenciosa ou não, para que rapidamente saiam de cena. Aos médicos será dada autorização para matar. E é impossível não notar que por detrás de tudo há seguramente fortes motivações económicas porque, de facto, é caro tratar de idosos e de pessoas com doença prolongada ou terminal.  

Escrevendo em 1937, quando em muitos países da Europa a eutanásia começava a ser proposta como um sinal de progresso, um escritor inglês observou: “Neste momento, a eutanásia é apenas uma proposta para matar aqueles que são um incómodo para si próprios, mas brevemente será aplicada àqueles que são um incómodo para os outros”.

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