Um optimista tolerante

Costa é, sobretudo, um optimista tolerante que soube libertar o PS e deixar respirar internamente as duas tendências que sempre nele existiram, a maior parte do tempo oprimidas por lideranças autoritárias. E fê-lo com o mesmo espírito e o mesmo estilo com que gere a aliança parlamentar do PS com o BE e o PCP.

António Costa é um optimista. “Irritante”, segundo o Presidente da República. Apenas bafejado pela sorte, segundo muitos — Manuel Alegre usou mesmo Camões para salientar este tipo de reacções ao sucesso das políticas orçamentais do Governo: “Inveja é a última palavra dos Lusíadas e, no que diz respeito a Mário Centeno, tornou-se a primeira dos ressentidos.” Mas Costa é também um optimista pragmático que demonstrou como se lida com um congresso que surge desfasado dos ciclos eleitorais.

É, sobretudo, um optimista tolerante que soube libertar o PS e deixar respirar internamente as duas tendências que sempre nele existiram desde a fundação, que eram assumidas em confronto interno sob a liderança de Mário Soares e, depois, foram sendo oprimidas por lideranças autoritárias. E fê-lo com o mesmo espírito e o mesmo estilo com que gere a aliança parlamentar do PS com o BE e o PCP, deixando a cada partido manter a sua identidade e apenas convergir em medidas com as quais estão todos de acordo.

Foi isso que ficou explícito no 22.º Congresso do PS, na Batalha, uma reunião magna que surge a destempo e que Costa tratou de aproveitar para mobilizar o partido para as batalhas eleitorais das europeias (26 de Maio de 2019) e das legislativas (Outubro de 2019). Fê-lo, através de uma moção de estratégia suficientemente vaga quanto a conteúdos concretos, mas bastante clara quanto a áreas de aposta estratégica do PS no médio e até no curto prazo, levantando problemas que se vão colocar ao país e ao mundo.

Preparar o futuro

Adiou, assim, a definição de programas eleitorais para as convenções de Janeiro, para preparar as europeias, e de Junho, para as legislativas. Mas preparou a direcção do partido para esse momento, assumindo que esta tem de estar coordenada e beneficiar da experiência governativa. Para isso, levou para o secretariado nacional do PS oito membros do Governo, todos da geração abaixo dos 50 anos, mas deixando simbolicamente de fora figuras de peso no seu núcleo duro do Governo como Augusto Santos Silva e Vieira da Silva. Uma aposta de renovação geracional que Costa salientou no discurso de encerramento, embora avisando: “Eu ainda não meti os papéis para a reforma.”

Por traço de carácter ou devido à experiência política, Costa mostrou, na preparação deste congresso e durante os três dias na Batalha, o que é um líder tolerante e que isso pode beneficiar e dinamizar um partido político — por mais estranho que tal possa parecer a muitos observadores políticos habituados a comentar um sistema partidário eivado de lideranças intolerantes e sectárias.

Com a mesma abertura com que aceita que Catarina Martins e Jerónimo de Sousa digam do seu Governo o que Maomé não disse do toucinho, Costa deixou até espaço para que se perfilasse um candidato a sucessor, Pedro Nuno Santos, que ficou consagrado neste congresso como putativo futuro líder, num horizonte que ninguém sabe determinar, mas que pode ser distante, já que, se Costa ganhar as legislativas, terá ainda um ciclo de poder de mais quatro ou seis anos, dependendo de ter maioria relativa ou absoluta nas urnas.

Sendo secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e responsável pela gestão quotidiana das relações do Governo com o BE e o PCP, Pedro Nuno Santos teve mesmo espaço para apresentar uma moção sectorial sobre o papel do Estado na economia. Um documento com forte pendor doutrinário e cujo conteúdo tem, no fundo, a dimensão de uma moção de estratégia global. Costa até levou Pedro Nuno Santos para o secretariado, ainda que diluído numa maioria de dirigentes da ala mais moderada do partido.

A tolerância do líder do PS permitiu assim que saíssem à luz do dia, sem temores nem subterfúgios, as duas tendências do PS, com as suas diferentes políticas de alianças e linhas de interpretação da social-democracia e do papel do Estado. Isso ficou transparente e oficializado durante o debate de sábado.

De um lado, Pedro Nuno Santos na defesa da continuação da actual aliança com o BE e o PCP para lá de 2019, secundado por dirigentes que lhe são próximos, como Duarte Cordeiro, segundo subscritor da sua moção, ou Pedro Delgado Alves. Mas também por personalidades como Ana Gomes. E foi legitimado historicamente por Manuel Alegre, o líder da tendência de esquerda do PS, a quem sucede. Alegre foi veemente a considerar que a “viragem à direita representaria um risco de morte para o PS” e a defender que o “PS é um partido democrático e não a ala esquerda do neoliberalismo ou a bengala da direita”.

Até às convenções

Mas se Pedro Nuno Santos foi intensamente aplaudido, não ficou sem resposta. A liberdade interna que Costa fez regressar ao PS permitiu que a tendência moderada do partido se exprimisse no palco na defesa da autonomia estratégica do partido no que toca à política de alianças pós-legislativas e ao papel do Estado.

Augusto Santos Silva, que no período pré-congresso protagonizou a defesa da autonomia estratégica do PS, tratou de explicar que combate a “direita” e “todas as tentativas de retirar autonomia ao PS, de negar a natureza de espaço central, de diminuir a capacidade de afirmar-se como progressista e europeísta”. Na mesma linha, seguiram-se figuras com peso histórico e político no PS: Ferro Rodrigues e Carlos César, passando por Vasco Cordeiro e Porfírio Silva, que de forma clara advogaram a autonomia estratégica do partido.

De forma mais enfática, defendendo que “o PS deve governar sozinho com disponibilidade para falar à esquerda e à direita”, Francisco Assis lembrou que sempre esteve contra a actual aliança parlamentar: “Disse, em nome da minha concepção do PS, que sou contra esta solução. Acho que a solução é má.” Assis conseguiu dizê-lo sem ser assobiado e arrancando uma intensa salva de palmas, quando terminou dizendo a Costa: “És um bom primeiro-ministro com a ‘geringonça’, imagino o primeiro-ministro que hás-de ser sem esta solução.”

A subtileza máxima na demarcação das teses de Pedro Nuno Santos veio de outro putativo futuro líder, Fernando Medina, que de forma quase subliminar fez a defesa do pragmatismo político, lembrando que o “ideário sem acção é um vazio” e advogando que “o PS tem de saber onde procurar alianças para transformar a sociedade”.

Uma intervenção muito próxima do que foi defendido por Costa na abertura, ao garantir: “Estamos onde sempre estivemos e estaremos exactamente onde estamos.” Frisando que, “sendo fiel à sua identidade, o PS foi sempre um partido do seu tempo e soube assegurar a vitalidade dos seus valores” — liberdade, democracia, igualdade e solidariedade —, mas “preservando os mesmos valores, em cada geração e cada época, porque sabe que esses valores exigem novas respostas”. Ou seja, Costa fez a reafirmação do conceito de “partido charneira”, criado por Mário Soares, sem nunca falar de alianças, a não ser para deixar a porta aberta a todos os entendimentos: “Sempre fomos defensores do diálogo político alargado e podemos orgulhar-nos de, nesta legislatura, termos acabado com a ideia do arco da governação que excluía partidos democráticos.”

Resta saber como vai Costa gerir esta questão até às legislativas, particularmente na convenção de Junho. Poderá Costa chegar ao dia das eleições, no ainda distante Outubro de 2019, sem abrir o jogo?

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