A memória dos arrozais servida num prato

Pedimos a Bruno Carvalho, chef do restaurante Criatura, que apresentasse três dos seus pratos de arroz e recomendasse três vinhos para os acompanhar. Ele fê-lo, partilhando as suas recordações de uma infância passada no meio dos campos de arroz do vale do Pranto.

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Rui Gaudêncio

Bruno Carvalho cresceu entre os arrozais. As memórias de infância do chef dos restaurantes Suba e Criatura, no Verride Palácio Santa Catarina, em Lisboa, são todas ligadas ao ritmo da vida numa aldeia – Calvino, em Borda do Campo, Figueira da Foz – rodeada de campos de arroz, no vale do rio Pranto.

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Bruno Carvalho cresceu entre os arrozais. As memórias de infância do chef dos restaurantes Suba e Criatura, no Verride Palácio Santa Catarina, em Lisboa, são todas ligadas ao ritmo da vida numa aldeia – Calvino, em Borda do Campo, Figueira da Foz – rodeada de campos de arroz, no vale do rio Pranto.

“O arroz acompanhou-me desde a infância”, conta. “Borda do Campo é uma zona onde há essa constante mudança de paisagem, do espelho de água ao verdejante que surge quando o arroz começa a crescer e parece um manto verde, ao dourado de quando as espigas começam a maturar, até ao castanho do restolho depois da apanha.” Após a colheita, as palhas ficam a secar nos campos e “há uma altura em que as queimam e estamos a olhar para um campo isolado com fogueiras por todo o lado, durante a noite”.

Quando era criança, recorda, o cultivo do arroz era ainda muito artesanal, sem a maquinaria que existe hoje. “O terreno era tratado inicialmente com os bois, a sementeira era à mão, os homens levavam um saco com os grãos de arroz que já tinham germinado em água para os semear.” Os terrenos eram balizados por canas que as pessoas apanhavam nos canaviais em redor e usavam para fazer corredores.
Bruno não teria nessa altura mais do que oito anos, mas não esquece essas cenas, a sementeira, depois a colheita, homens e mulheres avançando pelos campos, de foices na mão, juntando molhos que equilibravam com mestria nos carros de bois para que não caíssem pelos esburacados caminhos agrícolas.

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Bruno Carvalho, chef do restaurante Criatura Rui Gaudêncio

Para Bruno e os amigos, a parte mais divertida era quando os adultos se juntavam para tirar as espigas do arroz. “Isso era feito numas máquinas antigas, as descascadoras, ainda movidas a correias.” A palha que saía da máquina era o grande divertimento para os miúdos, que pulavam para cima dos montes, tentando resistir às comichões e aproveitando para brincar antes de ela seguir para os palheiros onde era guardada para alimentação dos animais.

Depois de o arroz colhido, era altura de os miúdos irem para as valas em redor dos campos e, armados com armadilhas de pesca, baterem a água para obrigar os peixes a entrar na rede. Outras memórias de Bruno estão ligadas à transformação do arroz. “O meu avô, que fez agora 95 anos, era moleiro e as pessoas levavam-lhe sacos com o arroz ainda com casca para fazer o descasque na mó de granito, movida a água, ou para fazer a farinha.”

Ainda hoje há quem prefira este processo artesanal porque “o arroz mantém mais alguma goma, não há um desgaste do branqueamento tão profundo como no processo industrial, a fricção que a pedra faz entre o granito e a base de cortiça é inferior.” Esse arroz saído da mó ficava mais opaco, com um ou outro grão por descascar, alguma impureza agarrada. Era por isso que, antes de se cozinhar, deitava-se água sobre ele, fazendo vir ao de cima as impurezas para as separar.

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Arroz de cabidela Rui Gaudêncio

Era do arroz, ou das pescas, que vinha o rendimento da maior parte dos habitantes da Borda do Campo. Hoje, apesar de muita gente na região continuar ligada aos arrozais, as coisas são muito diferentes – quem trabalha os campos são máquinas, os tractores preparam os terrenos, a sementeira é feita por avioneta e a separação acontece imediatamente após o corte, arroz para um lado, palha para o outro, esticada em linhas sobre o terreno que vai, mais tarde, ajudar a fertilizar.

Além disso, continua Bruno Carvalho, “hoje os italianos estão a comprar 90% da produção de arroz do vale do Pranto”. O carolino, da variedade aríete, tem características próximas (mas não iguais) às do risotto – é um arroz que fica bem caldoso, porque, ao contrário do agulha, por exemplo, que fica solto, tem capacidade para absorver parte do caldo e todo o sabor. Para o chef do Criatura, o do vale do Pranto tem uma característica que lhe agrada muito: “No interior é suave, mas o exterior do grão oferece alguma resistência inicial, o que evita que, ao cozinhar, se desfaça e fique em papa.” Quando serve, tem o cuidado de ver se o arroz vai colocado num prato mais raso ou num tachinho – a velocidade de absorção do líquido será diferente e é preciso ter isso em conta para que esteja no ponto quando for comido.

Os produtores mais pequenos de Calvino e arredores continuam a guardar sacas de arroz para irem cozinhando ao longo do ano e para fazer as especialidades da região, a mais famosa das quais é o arroz de carneiro com hortelã, que até tem uma festa anual a ele dedicada. Há também o arroz de petingas e, claro, o arroz doce, que a avó de Bruno fazia com um chá de flores de laranjeira colhidas por ela. “Como o arroz tem uma goma grande, essa cremosidade sobrepunha-se a tudo e parecia quase um leite-creme.”

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Arroz de línguas de bacalhau Rui Gaudêncio

Essas memórias, desde as discussões dos produtores sobre a gestão comum da água para os arrozais até às colheradas de arroz doce quente, ainda na panela, que a avó o deixava tirar, tudo isso é parte integrante da forma como Bruno cozinha hoje, mesmo depois de uma carreira internacional que o levou a Nova Iorque, ao Dubai e às Seychelles.

No Criatura e no gastrobar Suba (no topo do Palácio Verride, com uma vista extraordinária sobre Lisboa e o Tejo) faz uma comida onde junta muitas dessas influências, mas onde o arroz continua a ter um lugar muito especial. Tal como tem para a maioria dos portugueses desde que a sua produção foi introduzida, durante o reinado de D. Dinis.

Portugal é o país europeu com maior consumo de arroz per capita (cerca de 16 kg por pessoa por ano) embora nos últimos anos se tenha registado uma quebra e o carolino, o tipo mais produzido nos arrozais nacionais, tenha vindo a perder espaço nas despensas, dando muitas vezes lugar ao agulha (que também se produz em Portugal), ao mais exótico basmati ou ainda ao risotto italiano. O que Bruno Carvalho quer recordar ao trabalhar o carolino, dando-lhe destaque na carta, são as razões que fazem dele, desde sempre, o melhor arroz para a cozinha portuguesa.