Depois das ruas e das fábricas, a Outra Voz chega ao teatro

Grupo comunitário de Guimarães estreia O Outro de Nós este sábado à noite no Centro Cultural Vila Flor, fruto de uma colaboração com o Teatro do Frio e de uma recolha de material que construiu o espectáculo a partir dos contributos dos seus próprios intérpretes.

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Dança folclórica, teatro musical
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Teatro musical
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“Eu também conheço uma forma de chamar grilos, mas era diferente dessa”, diz alguém a dada altura. “Na minha terra, fazia-se assim”, responde outra pessoa. Instala-se uma discussão e de repente há três, quatro, cinco tipos de “grilos” diferentes. Já passou cerca de um ano desde esta conversa e não chegámos a assistir a ela. É Carlos Correia, coordenador-geral do grupo de comunidade Outra Voz quem a conta, para explicar como se construiu O Outro de Nós, o novo espectáculo que o projecto artístico sediado em Guimarães estreia neste sábado.

O grupo conta com mais de uma centena de participantes, dos quais 85 vão estar em palco no Centro Cultural Vila Flor. E foi a partir destas pessoas, das suas memórias – e também das suas angústias, que foi sendo criado o espectáculo. “Promovemos este tipo de discussões e quando percebemos que havia uma série de formas de chamar grilos, decidimos introduzir uma espécie de batalha de grilos”, prossegue Carlos Correia.

Este é apenas um exemplo. A construção de O Outro de Nós começou no início do ano passado. O músico Pedro Almeida dirigiu uma oficina de precursão em que explorava exercícios que permitiam aos participantes desnovelar memórias pessoais e auditivas, como cantigas tradicionais. Muitas delas fazem agora parte do espectáculo.

O trabalho de recolha – cujo resultado vai ser disponibilizado publicamente num repositório digital – foi prosseguido por José Eduardo Silva, actor e um dos directores-artísticos do Teatro do Frio, que dirige O Outro de Nós. Juntou textos escritos por vários participantes e outros que ele mesmo foi escrevendo com base nas conversas mantidas com as pessoas da Outra Voz. “Depois começamos a interagir uns com os outros nestes ensaios e foi surgindo mais material”, explica.

O Outro de Nós baseou-se em O Pobre de Pedir, obra póstuma de Raul Brandão, editada em 1931, mas esta “foi mais um ponto de partida do que um ponto de chegada”, afirma o encenador. À obra de Brandão, José Eduardo Silva foi buscar a estrutura narrativa não linear – que permite passar de uma situação de piquenique colectivo num parque para um momento performativo mais intenso – e também a lógica dramatúrgica que a um momento se aproxima mais do registo psicológico e a outro do retrato social.

É também assim construído o texto que os participantes da Outra Voz interpretam no espectáculo. Ora se põem em evidência as suas angústias pessoais e interiores, ora se deixa efervescer uma revolta social a que se consegue perceber o tempo e o lugar: fala-se de “austeridade”, de governos com “insensibilidade social” e sabemos que estamos ainda perto da crise, num território muito marcado por ela.

Outra Voz nasceu em 2010 e no início eram menos de 20 pessoas. O projecto cresceu com a Capital Europeia da Cultura, de onde saiu com 150 participantes e como um grupo de trabalho artístico comunitário ímpar e de difícil catalogação. Em 2012, participou no disco de Amélia Muge e Michales Loukovikas, na performance do artista sonoro Jonathan Saldanha, que teve por base a acústica da estamparia da antiga fábrica Asa, ou no espectáculo de encerramento do evento Então Ficamos, colaborando com artistas como António Durães, José Mário Branco ou Adolfo Luxúria Canibal.

A versatilidade que a Outra Voz sempre apresentou fez com que uma pergunta ficasse no ar: o que é, afinal, este grupo? É um coro, um colectivo ligado à performance ou outra coisa qualquer? “Nunca há uma resposta definitiva”, admite o coordenador-geral, Carlos Correia. A grande linha condutora do projecto artístico é ter a voz humana no centro da criação. A partir daí, não há grandes limites definidos.

“Isto não é dança, isto não é teatro, isto não é coro: isto é uma forma de responder à vontade que as pessoas têm que isto não acabe”, sublinha Correia. É essa uma das marcas deste projecto. Há oito anos que uma centena de pessoas se juntaram numa associação, pagam uma quota mensal que serve para custear o trabalho dos músicos e facilitadores que preparam seis ensaios semanais – em cada um dos grupos locais espalhados por Guimarães, que vão desde a cidade, às vilas que cresceram com a indústria têxtil ou a territórios mais marcadamente rurais do concelho – e a produção de espectáculos como este.

Se a Outra Voz não sabe ao certo como definir-se, não será O Outro de Nós a ajudar a clarificar. Este espectáculo vem até baralhar um pouco mais as contas, no sentido em que, pela primeira vez, o grupo pisa um palco convencional, o do Centro Cultural Vila Flor (Grande Auditório, 21h30) e colabora com uma companhia de teatro, o Teatro do Frio. “Depois de invadirmos praças, ruas, fábricas, achamos que era a hora de estarmos também num teatro”.

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