E uma alta autoridade contra a violência doméstica?

Caros deputados e deputadas de todos os partidos: aproveitem o fim da legislatura para dar passos mais significativos no combate à violência doméstica e de género.

É bom ou mau a política ir atrás do tema do momento? Depende de como o fizer. Por isso vale a pena, quando o tema do momento começa a deixar de ser o tema do momento, fazer uma pausa para avaliar como nos comportámos. Um exercício incomum, mas necessário.

Durante uma semana falou-se de pouco mais do que de futebol, por causa de um presidente de clube em colapso moral e um grupo de adeptos que se organizou para agredir e ameaçar os atletas profissionais do mesmo. Falaram os jornais, falaram as televisões (não que estas falassem pouco de futebol antes disso), falaram os clientes habituais à mesa dos cafés. E falaram os políticos.

No meio do despertar generalizado dos políticos para o que tinha acontecido apareceu a ideia - apresentada pelo primeiro-ministro - de criar uma Alta Autoridade Contra a Violência no Desporto. À primeira vista, parece que faz sentido. Mas a questão de saber se é mesmo boa ideia divide-se em duas partes. A primeira é da eficácia: saber se resolve o problema. A segunda é da proporcionalidade: saber se problemas equivalentes ou maiores não mereceriam equivalente ou maior atenção.

Tratemos rapidamente da primeira parte: uma autoridade para a violência no desporto pode limitar-se a tratar da febre - quando adeptos agridem atletas - mas não das causas da febre: a corrupção no futebol, o discurso de ódio, a hipersaturação de comentário sobre futebol no espaço público. Para isso já há muitas instituições públicas, estatais ou desportivas, que não fazem o que seria necessário. Será preciso fazer a prova de se uma nova instituição não se limitará a juntar ineficácia à ineficácia.

Mas é o problema da proporcionalidade que, para mim, é particularmente chocante. Sem menorizar o problema da violência no desporto - já houve adeptos mortos em pelo menos duas ocasiões nos últimos anos - o país tem um outro problema de violência que é estrutural, que é recorrente, e que provoca dezenas de vítimas todos os anos. Estou a falar, é claro, da violência doméstica. E esse problema ocupa muito menos espaço no debate público. Estamos a fazer qualquer coisa mal.

Há quatro anos, quando foi eleito líder do maior partido da oposição, o atual primeiro-ministro chamou a atriz Maria do Céu Guerra ao palco para ler os nomes de mulheres assassinadas no país. Passados quatro anos há mais salas de atendimento nas esquadras, há mais abrigos para as vítimas, mas a situação não mudou estruturalmente. Entre 2004 e 2015 foram assassinadas 428 mulheres. No ano passado terão sido assassinadas cerca de vinte mulheres; a tendência é de descida, mas não chega. E o fenómeno da violência doméstica atinge ainda idosos, crianças e, sob um preocupante manto de silêncio e vergonha, homens também.

Era só o que faltava que a centralidade que o futebol ocupa nas televisões e em todo o lado nos fizesse agir com muito mais rapidez para criar para a violência no desporto a alta autoridade que não existe para a violência doméstica. Bem sei que é a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género que tem um papel central nas estratégias contra a violência doméstica, mas não faria muito mais sentido que o fizesse liderando uma alta autoridade interdisciplinar e com amplos poderes e recursos para garantir a erradicação da violência doméstica e de género como fenómeno estrutural em Portugal?

Daqui a momentos, o tema do momento será - já é - a eutanásia. O debate no Parlamento será dominado pela questão de como deve a lei enquadrar a morte voluntariamente requerida, e todos os partidos proclamarão, por dever e convicção, o apego que têm ao valor constitucional da defesa da vida. É um tema importante, e a ele voltarei para explicar porque sou a favor da cuidadosa legalização da eutanásia que agora se propõe.

Mas antes que esse tema domine todos os nossos momentos, vale lembrar uma coisa: onde não há dúvidas para a interpretação do direito à vida é quando há uma cidadã ou cidadã vulnerável na casa onde deveria estar segura, e muitas vezes após procurar o auxílio das autoridades do estado de direito. Por isso, caros deputados e deputadas de todos os partidos: aproveitem o fim da legislatura para dar passos mais significativos no combate à violência doméstica e de género, eventualmente através da criação de uma alta autoridade. Não esperem pelo momento para falar no assunto. Façam deste um combate de todos os momentos.

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