Depois da social-democracia I

Contributo para o debate sobre a necessária evolução do pensamento político e social do PS como força agregadora do reformismo Português do século XXI (primeira parte).

Os termos da atual discussão ideológica no Partido Socialista, em torno da social-democracia e da Terceira Via, devem reconsiderar os seus pressupostos e fundar-se na realidade.

Não há nenhuma crise da social-democracia, pelo simples facto de essa já não ser uma opção ideológica contemporânea. A social-democracia cumpriu o seu programa e concluiu o seu desígnio histórico. Libertou gerações de europeus da tirania do medo e da opressão económica e social através da educação e saúde públicas, da segurança social e da gestão pública de alguns fatores de produção. Foi o programa político mais eficaz e de maior sucesso na história da humanidade: garantiu o maior período de paz na Europa, exportou desenvolvimento e instituições, colocou sociedades no topo dos índices de desenvolvimento económico, de coesão social e de realização humana, e ajudou a criar aquilo que ainda hoje é um farol de realização coletiva e individual, a ideia de Europa. 

Os termos da discussão não devem igualmente centrar-se numa crítica à Terceira Via, via essa que ainda encerrava em si uma certa validação da dominação do indivíduo pelas grandes estruturas (Estado, religião, regras e práticas sociais e culturais) e um reconhecimento insuficiente da capacidade de ação crítica dos indivíduos. Apesar da sua influência global, ela foi uma proposta política datada nos seus fundamentos teóricos, de final dos anos 80, e localizada num sistema de organização social muito específico: no Reino Unido protestante e milenarmente liberal, devastado pelo declínio do Thatcherismo, e no pico de uma realidade a preto e branco, vidrada no maniqueísmo da Guerra Fria. A Terceira Via é, no entanto, epistemologicamente mais sólida que as visões estruturalistas do século XIX, mesmo depois de temperadas e recauchutadas durante os anos 60 e 70, em plena ilusão do sucesso soviético. E teve o inegável mérito histórico de revelar a existência de uma relação mais crítica e interativa entre os indivíduos e as instituições sociais, constituindo-se como um degrau indispensável para melhor compreendermos os desafios que se nos colocam hoje. 

Pouco importará neste contexto fazer uma defesa vigorosa da Terceira Via. Mas é útil impedir que passem em claro ideias erradas sobre o que realmente aconteceu, ou admitir que dados falsos ou inexistentes possam ajudar ao processo em curso de criação de uma novilíngua neomarxista. 

Em 1991, 44% da população mundial vivia em pobreza; hoje, esse número é de 14% — uma evolução que corresponde precisamente ao período de maior predominância da realização e dos efeitos das políticas ditas de Terceira Via, a partir de um país-ilha com influência económica, financeira, jurídica e política muito para além da sua dimensão geográfica ou demográfica, com evidentes e inegáveis réplicas em Portugal, Alemanha, França e Estados Unidos da América. Tal redução estrutural da pobreza é um passo indispensável no combate às desigualdades sociais. 

Por outro lado, defender que uma economia complexa e aberta como a do Reino Unido podia crescer ininterruptamente durante 10 anos, retirando mais de 600.000 crianças da pobreza, apenas por causa de uma bolha imobiliária e financeira, é enganador e meramente proclamatório. Tão enganador ou inflamatório como seria afirmar que os últimos três orçamentos do Estado e as novas orientações políticas dominantes na Assembleia da República portuguesa, estão a criar uma nova bolha imobiliária e financeira, considerando que os empréstimos para a compra de casa ascenderam, no primeiro trimestre de 2018, a 2.186 milhões de euros, o valor trimestral mais elevado desde 2010; e o crédito ao consumo aumentou para 1.123 milhões de euros ( o montante mais elevado desde o período homólogo de 2006). 

A crise com que se confrontam as ideologias políticas tradicionais pouco ou nada tem a ver com reconfigurações terminológicas da luta de classes, ou com a necessidade de melhor representação dessas supostas classes. Nem tão pouco resulta de cíclicas crises económicas e financeiras. A crise que todos sentimos é uma manifestação do agregado das inseguranças, dos medos e das novas necessidades dos indivíduos, desde os mais autónomos aos mais deixados a si próprios. Perante novas ameaças, os indivíduos confrontaram-se com novos e renovados medos. As ideias coletivistas (identidade nacionalista, religiões globais e radicais sem estrutura hierárquica, extremismo político de reação às instituições existentes) ofereceram âncoras de certeza, segurança, discernimento, clareza e simplicidade – sendo pouco relevante, nesse mundo de angústias, qualificar a sua filiação moral. 

É neste contexto que a União Europeia se torna o alvo preferencial das forças reacionárias e dos projetos de sociedade fechada, numa agenda onde os mais velhos partidos comunistas se encontram com os mais novos partidos neo-nazis. A UE é apanhada num turbilhão de movimentos contraditórios. Por um lado, uma cada vez maior autonomia dos europeus perante os Estados. Por outro, novas ameaças coletivas, que potenciam nativismos e nacionalismos, precisamente num contexto em que os países, sozinhos, pouco ou nada podem fazer contra tais ameaças. E é essa a fonte da crise europeia:  um projeto coletivo em acelerada superação da ideia de nação, subitamente confrontado com o aparente sucesso de novas nações emergentes, sociedades fechadas e coletivistas, apoiadas por um financismo que floresce com Estados em competição e fracos. A social-democracia enfrentou medos e desafios de outra época. Importa agora criar novas políticas que enfrentem os medos e desafios contemporâneos. Políticas que permitam às pessoas encontrar no trabalho uma maior realização pessoal. Que lhes permitam assumir a plenitude dos seus direitos de cidadania como agentes políticos interessados e participativos.

O ponto principal, e a que voltaremos adiante, é simples: as sociedades são hoje mais complexas; os indivíduos são, comprovadamente, detentores de sentido crítico; e as políticas panfletárias são, neste quadro, insustentáveis. 

Persistir na ideia que a redistribuição fiscal e as prestações sociais são suficientes para garantir igualdade nas condições de vida e segurança comunitária só pode revelar um profundo desligamento da realidade social. Revela que não se entra num hospital central público há muitos anos. Revela que não se leram as notícias sobre as inscrições nas escolas. A social-democracia foi pensada para sociedades massificadas e muito homogéneas. Essas políticas são hoje incapazes de produzir referências de equidade e justiça na nova heterodoxia de sociedades culturalmente diversas e com aspirações individualizadas. As suas instituições passaram a reproduzir desigualdades. 

É um facto inegável que um jovem nascido em Freixo-de-Espada-à-Cinta, numa família sem estudos para além da escolaridade obrigatória, e apesar de licenciado, não tem a mesma igualdade de acesso a oportunidades que uma jovem nascida no seio de uma família de altos funcionários públicos, com estudo pós-graduados de Universidades de Lisboa, vivendo na comunidade da escola D. Filipa de Lencastre. Ambos têm acesso a educação e saúde públicas. Ambos são beneficiários de sistemas de apoio social, em diferente medida. Mas a desigualdade é gritante no capital social e cultural de cada uma das suas famílias e da sua geografia residencial, na qualidade de educação, nas oportunidades profissionais (sobretudo no acesso a determinados níveis de entrada) e numa profunda e dramática diferença no acesso às redes de poder e de informação social, política e económica.

Para se compreender a crise ideológica de que todos falam, é necessário reconhecer que na sua origem estão também determinadas e específicas políticas domésticas que não travaram a reprodução das desigualdades: a machadada final no Serviço Nacional de Saúde, com o acesso dos beneficiários da ADSE aos hospitais privados do Porto e de Lisboa, aliviando a pressão democrática para a melhoria do SNS; a incapacidade de garantir direitos laborais equivalentes entre trabalhadores do Estado e do Privado, tendo com isso ajudado a degradar o apoio democrático aos serviços e às políticas públicas; uma obscura política de gestão da água e dos resíduos que se confronta hoje com mais de 240 mil casas portuguesas sem água; políticas agressivas de inclusão e de assistência social, acompanhadas de enormíssimos incentivos à “economia social”, mas incapazes de baixar da fasquia dos dois milhões, o número de portugueses em risco de pobreza; uma missão coletiva de aposta nas energias renováveis que apenas garantiu gasolina e eletricidade das mais caras do mundo, rendas excessivas a servirem agendas geoestratégicas alternativas à Aliança Atlântica e à UE, e impotência perante o iminente desaparecimento de 100 milhões de euros no PIB após uma ligeira subida do preço do petróleo; e, finalmente, um ataque descabido aos professores, os principais (senão os únicos) agentes para uma real transformação social na sociedade portuguesa, e fulcrais para a eliminação do nosso défice crónico, a falta de qualificação (em sentido lato, e a todos os níveis). 

Estas marcas da governação nacional no século XXI, minaram a credibilidade, autoridade e eficácia do Estado na sua capacidade de combater as desigualdades. Ao destruírem a igualdade no acesso aos cuidados de saúde. Ao fragilizarem direitos sociais dos trabalhadores do sector privado. Ao criarem novas desigualdades no acesso à água e à eletricidade, neste caso gerando mais pobreza junto dos nossos concidadãos reformados. Ao transformarem a educação pública numa fábrica de reprodução de desigualdades sociais. Este quadro completa-se com uma atitude defensiva, incapaz de avaliar políticas e reconhecer falhanços, e um corporativismo dos que ainda beneficiam das instituições que agora reproduzem novas desigualdades. Assim se explica o basismo neomarxista vigente nas trincheiras dos partidos de esquerda.

Os termos da discussão estão também condicionados pela ideia de que algo é de esquerda ou não, à partida, por qualificação proclamatória ou por apropriação institucional. Esquerda e Direita são categorizações em constante mutação, estritamente ligadas aos acontecimentos históricos e às sucessivas conquistas sociais. É possível que algo considerado de esquerda hoje, seja considerado de direita daqui a 100 anos. Não reconhecer este facto da história do pensamento político é, ironicamente, uma profunda contradição com um dos elementos essenciais das teorias estruturalistas (desde Marx ao estruturalismo francês dos anos 60-70) : as sociedades constroem as suas ideias, e as suas estruturas de dominação, com ou sem violência, preservam-nas. O mesmo se aplica à ideia de Estado. O Estado não é necessariamente, ou eternamente, o melhor meio para combater as desigualdades (como o provam o crescente poder de consumidores críticos, o valor acrescentado do comércio justo, ou a eficácia de inúmeras organizações não-governamentais). A esquerda fundou-se no combate à ideia Estado. É prematuro excluir a necessidade de voltar a fazer esse combate para garantir maior igualdade no bem-estar-social. 

O marxismo ajudou-nos a compreender que o livre mercado, sem nenhum controlo democrático ou institucional ( a realidade do século XIX ), nem qualquer referência a ideias socializadas, produzia enormes desigualdades. Esse livre mercado já não existe. Não existe nenhum campo dos fluxos económicos e comerciais tradicionais entre as principais economias mundiais que não esteja sujeito a densas regras e complexas instituições nacionais, regionais e internacionais, em representação de todos os sistemas políticos, económicos e sociais. Nos dias de hoje, repetir até à exaustão uma ideia falsa, não a pode tornar verdadeira – isso é impróprio de uma sociedade liberal e democrática. Os mercados selvagens não existem – e, nas mitigadas dimensões em que possam temporariamente existir, tal acontece porque os nossos representantes nas instituições que os regulam ou são incompetentes ou não sabem explicar convenientemente as suas ações. 

Num desenvolvimento tão recente quão surpreendente, a esquerda, toda a esquerda ocidental, encontrou algo já profuso nas ciências sociais, mas novo na ação política corrente: o elixir da desconstrução social, um verdadeiro substituto para a imposição revolucionária de uma ditadura do proletariado. Esse elixir, que comprova serem as organizações social e económica meras construções sociais, desvendou como desmantelar as instituições da nossa sociedade responsáveis pela reprodução de desigualdades. Sem a violência da revolução cultural chinesa, o movimento de desconstrução social atinge hoje o seu expoente máximo nos Estados Unidos da América, onde dão origem a políticas identitárias, agora proliferando pelo mundo das redes sociais. 

As políticas identitárias pouco ou nada contribuem para a igualdade, como bem compreende o PCP, e como ingenuamente falhou em compreendê-lo o BE. O PCP, o partido da igualdade à custa da liberdade, despreza as políticas identitárias (incluindo as políticas ativas de promoção da liberdade de orientação sexual) porque entende que tais divisões não são consistentes com a ideia de divisão social em classes económicas, porque camuflam a luta de classes e reduzem a capacidade de alcançar a necessária consciência de classe para um avanço rumo ao comunismo, através da ditadura do proletariado. O BE, o partido tão só da desconstrução social, tal como muita esquerda norte-americana, caiu na tentação das políticas identitárias por entender que estas podem sobretudo ser usadas para desconstruir as instituições de dominação existentes – como parece ser o caso – e, portanto, acelerar a transição para a sociedade sem classes. Em ambos os casos, seguem a máxima marxista: “...para o materialista prático, ou seja para o comunista, é mister revolucionar o mundo existente, atacar e transformar praticamente o estado de coisas que encontra.” 

O que não pode ser ignorado é o facto de em sociedades modernas e complexas estes patrocínios, mais ou menos dissimulados, a formas violentas de ataque e transformação das instituições implicarem a opressão e a exclusão de largas franjas da sua população. A história já nos ensinou que substituir uma opressão por outra está longe de ser um caminho de libertação.

Acresce que nenhuma destas forças da desconstrução apresenta uma alternativa viável para novas construções sociais – qual a sua proposta institucional, realista e credível, para preencher os vazios da sociedade desconstruída? Elas servem, mais uma vez, para condicionar o sentido crítico dos indivíduos fazendo crer que são meras peças num grande jogo de estruturas e de identidades socializadas, relativamente às quais têm sempre reduzido poder de ação. 

Mas os indivíduos realizam-se consciente e moralmente perante diferentes quadros de referência ou grandezas. Os cidadãos, em sociedade, e não as instituições ou as ideias políticas, são a fonte da ação social, da ação política. O debate político tradicional tem extremado posições situando os indivíduos ora de um lado, ora do outro lado, da tensão histórica entre a liberdade e determinismo: o mesmo indivíduo, ou é capaz ou é incapaz, ou é livre ou é determinado. Mas por que não pode ser simultaneamente capaz e incapaz, livre e determinado, e, cada uma das possibilidades, em momentos distintos, perante situações diferentes? O debate entre livre arbítrio e determinismo, sobretudo por parte do estruturalismo, persiste em ignorar a evolução das capacidades humanas em usar de uma criatividade cada vez mais informada, com plena consciência da sua crescente autonomia.

Os cidadãos portugueses têm direito a reencontrar no PS o seu histórico papel de vanguarda política, emancipado do predomínio de políticas ultrapassadas.  O adiamento desse reencontro não é um resultado da terceira via, nem do fim da social-democracia. É um problema do PS, ao hesitar em reassumir o seu desígnio de sempre: liderar a sociedade portuguesa rumo a um estádio de desenvolvimento mais avançado, de combate ativo e eficaz a novas desigualdades sociais, assumindo-se como representante nacional de um socialismo mais liberal e mais pragmático – um socialismo de verdadeira emancipação.

Esta via reconhece a importância das instituições social-democratas, mas quer dotá-las de maior eficácia e equidade, garantindo que não reproduzem desigualdades. Este caminho reconhece os contributos de todas as gerações na construção de uma sociedade melhor, mas considera urgente reconciliar a ação e vida política com a realidade. Esta ação política aprende as lições de um passado recheado de lideranças inspiradoras e proclamatórias, mas quer promover um discurso de verdade, baseado em factos e na melhor ciência conhecida nos dias de hoje. Esta nova doutrina governativa permite-se experimentar, avaliar com rigor, reconhecer que falhou e voltar a agir na realidade, confiando na sociedade civil. Esta nova esperança quer superar a cultura do chefe, em que opções políticas residem mais na rede de poder construída por um predestinado, do que em opções políticas debatidas e decididas pelo conjunto da sociedade. Este projeto, aberto e coletivo, quer revisitar a forma como se conta a história das nações, questionando-a e substituindo-a por uma história das pessoas, sem transposição da moral de hoje para as sociedades de ontem, e procurando superar a excessiva ligação identitária à ideia das nações dos grandes feitos na confrontação com o outro.

Depois da social-democracia, importa reconhecer novas complexidades sociais, e agir em nome da igualdade, quando esquecida pela liberdade, e agir em nome da liberdade, quando comprometida pela igualdade.

João Ribeiro
Militante nr. 31248 do Partido Socialista
Secção de Campo de Ourique, Lisboa, Federação da Área Urbana de Lisboa

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