Os tintos criados para temperar o calor

O serviço a temperaturas mais baixas, a frescura acídula e o potencial para temperar o calor não são apenas atributos dos vinhos brancos. Em Portugal há um conjunto de castas, de regiões e de produtores a criar tintos mais leves que se bebem com especial prazer nos dias quentes.

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Carla Carvalho Tomás

É hoje certo, sabido e assumido que a verdadeira revolução dos vinhos nacionais acabou por se concretizar nos vinhos brancos, os antigos parentes pobres da equação. Produtores e consumidores passaram décadas seguidas esquivando-se aos vinhos brancos aplicando pretextos variados para não os levar muito a sério. Por um lado a maioria dos consumidores entrincheirava-se em chavões vazios que garantiam que “o verdadeiro vinho era o tinto” enquanto o vinho branco pouco mais seria que um refresco. Ou que as propriedades medicinais do consumo de vinho, sempre de forma regrada, só seriam verdadeiramente quantificáveis no caso dos vinhos tintos. A maioria dos produtores e críticos defendia que as castas brancas nacionais seriam de qualidade inferior às castas tintas, que o clima maioritariamente quente e soalheiro não ajudava, que Portugal estaria fadado para a produção de vinhos tintos e generosos.

E de repente tudo mudou, tanto do ponto de vista dos consumidores como dos produtores. O consumo de vinho branco passou a ser recomendado, descobriu-se por magia que afinal as calorias dos vinhos brancos até eram menores que nos vinhos tintos e que finalmente já era socialmente conveniente beber vinho branco. Ao mesmo tempo críticos e produtores descobriram dezenas de castas brancas nacionais estupendas, o clima passou a ser benéfico, a tecnologia ajudou em muitas operações e num ápice passámos a valorizar os vinhos brancos.

O que seria excelente e verdadeiramente democrático se já tivéssemos ultrapassado o último tabu, o preço que estamos dispostos a pagar pelo vinho. Porque por muita igualdade de género que queiramos alardear a verdade é que ainda sentimos dificuldade extrema em aceitar que os vinhos brancos tenham preços equivalentes ou mesmo superiores aos vinhos tintos, sinal que de mesmo que de forma subtil, continuamos a estabelecer diferenças qualitativas entre os dois estilos.

Agora que o Verão se aproxima, que as temperaturas escalam, que as esplanadas se começam a encher, que os pratos mais leves de verão ganham protagonismo seria de supor que os vinhos tintos perdessem lugar. Assim o é para os tintos mais pesados, de maior grau alcoólico, vinhos mais temperados pela madeira, tintos mais maduros e pesadotes. Esses acabam quase condenados pelos calores do estio. A ideia de manter refeições pesadas que se prolongam pela tarde ou noite dentro enquanto o fogo crepita na lareira e quando começamos a sentir um calor interior é algo que deixa de ser apetecível para passar a ser um pesadelo.

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Rui Gaudêncio

O que não significa que o tempo dos vinhos tintos tenha terminado ou que estes passem a estar banidos da mesa. Temos é de mudar os protagonistas dando espaço e tempo a outro estilo de tintos, vinhos mais leves, menos alcoólicos, mais frescos e acídulos que os tintos de inverno. Que não se confunda a ideia de leveza com algo deslavado e sem graça, vinhos aguados e desbotados ou bombinhas de fruta que pouco mais seriam que uma versão ligeiramente mais musculado da sangria. Muitos destes vinhos tintos de verão são intensos, repletos de tensão, vinhos que se destacam pela qualidade e que não devem ser encarados como um parente menor dos chamados tintos de inverno.

Quando se refere a ideia de leveza o contexto está mais ajustado à textura, sensação de corpo e volume alcoólico que à intensidade de sabor ou ao carácter do vinho. Não vamos querer taninos poderosos, sabores pesados, bocas cheias e híper concentradas. Mas muitos destes tintos de verão são vinhos enérgicos, veementes, tensos, frutados ou mais contidos, sempre frescos e com capacidade de fazer desejar mais um copo. Vinhos sérios ou mais fáceis que com frequência de simples não têm nada… mas sempre tintos capazes de refrescar.

E refrescar é uma dessas palavras-chave integrais aos tintos de verão. Não só na sua capacidade de dessedentar mas numa perspectiva mais directa e sobretudo mais prática, na temperatura de serviço. A ideia tão instalada de beber tintos à temperatura ambiente é um conceito ainda que se torna ainda mais surreal e afastado da realidade quando falamos em tintos de verão. Ou quando falamos da realidade do clima nacional, tanto no interior como no litoral, que no verão é capaz de roçar a canícula. Por isso se torna imperioso arrefecer os tintos de verão baixando a temperatura para níveis que poderão parecer excessivos para quem continua a querer propagar o mito da temperatura ambiente.

Os estilos mais leves, jovens e descomprometidos beneficiam se forem servidos a temperaturas ainda mais baixas, não muito distantes do intervalo superior dos vinhos brancos. Por serem menos taninosos e intensos, e tradicionalmente mais frutados, melhoram se no verão forem refrescados até próximo dos 13C. Pode sempre seguir à risca o velho conselho de quanto menos interessantes e mais jovens e inconsequentes forem os vinhos mais frios devem ser servidos.

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Nelson Garrido

Mesmo os tintos de verão mais sérios e austeros não deverão ser servidos acima dos 18 graus, temperatura a que costumam começar a perder os tais qualificativos de refrescar e dessedentar. Sobretudo porque, tendo em conta a temperatura ambiente elevada, o vinho vai rapidamente aquecer, característica que conduz à segunda obrigação, a presença de uma manga refrescante que permita manter um equilíbrio saudável que não transforme o vinho em sopa. Mas atenção, resista à tentação de baixar demasiado a temperatura. A partir dos 12C os taninos passam a dominar o palato, os sabores perdem-se e o vinho passa a exibir um cunho rude que mitiga ou anula o prazer.

Em Portugal procure de preferência vinhos de regiões de clima mais moderado, temperadas pela frescura retemperadora do Atlântico ou suavizadas pela bonança da altitude. Destacam-se assim de forma natural os vinhos oriundos das regiões do Vinho Verde, Bairrada, Lisboa, Península de Setúbal, Madeira e Açores. Denominações como o Douro ou o Alentejo deveriam sentir mais dificuldades neste capítulo mas as vinhas de altitude da Serra de São Mamede e os planaltos altos do Douro, sobretudo em redor de Alijó, garantem a temperança necessária que o interior continental raramente oferece. O Dão é outro caso paradigmático onde o clima continental consegue ser fintado por vinhas de altitude e por um sistema montanhoso que protege a região de muitas das intempéries do calor.

É destas regiões que provêm os quatro vinhos de verão recomendados neste texto. Quatro vinhos muito sérios, cada um à sua maneira, mas quatro vinhos que são excelentes por si próprios. Que o período de verão ainda lhes seja mais favorável é uma consequência do estilo, das escolhas enológicas dos autores e da bondade da natureza. Vinhos tintos provenientes da região do Vinho Verde, Bairrada, Dão e Alentejo. Poderiam ser muitos mais, de qualquer uma das denominações nacionais mas para este artigo foram escolhidas as quatro propostas que se seguem. Quatro tintos de baixo teor alcoólico, todos de guarda, os quatro beneficiários de temperaturas de serviço mais baixas.

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