Lisboa como cidade de despedidas segundo Tiago Rodrigues

Espectáculo escrito para os finalistas da escola suíça La Manufacture, Nada Acontece como Planeamos, até domingo no Dona Maria II, é pretexto para Tiago Rodrigues escrever sobre Lisboa. A cidade que é e não é a sua.

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Nada Acontece como Planeamos, texto e encenação de Tiago Rodrigues Filipe Ferreira

Uma velha no Jardim do Príncipe Real, estendeu um braço, puxou a folha de uma árvore, sem a arrancar, e cheirou-a. Quando seguiu caminho, uma rapariga imitou-lhe o gesto e, pouco depois, cruzou-se com alguém que resolveu fazer o mesmo. Esse encontro a dois havia de estender-se a um passeio por Lisboa, pelas ruas da cidade, pelos alfarrabistas, pelas piscinas, pelas feiras, até pelos apartamentos. Depois, os dois separaram-se e a história que se segue passa a documentar um desencontro repetido dia após dia, na repetição dos mesmos passos, pelos mesmos lugares, mas sem sucesso.

Nada Acontece como Planeamos, texto e encenação de Tiago Rodrigues para o espectáculo de transição entre estudantes e profissionais dos finalistas da escola suíça La Manufacture (de Lausanne), em cena no Teatro Nacional Dona Maria II de sexta a domingo, parte do episódio real do Príncipe Real para desenvolver uma ficção construída por 16 cartas de despedida (uma por actor), que redundam nessa frustração de um visitante da cidade tentar recuperar as rédeas do destino. Ou, na descrição do autor, começa por um mistério que podia caber nos contos de Raymond Carver, para passar a uma perseguição frustrada mais alinhada com Jorge Luis Borges.

Foi numa das várias visitas guiadas que o director do Dona Maria II preparou para o elenco suíço – que tiveram ainda como cicerones o jornalista Adelino Gomes ou a escritora Joana Bértholo – que a actriz Camille Le Jeune viveu apenas a primeira parte da história. Ou seja, no Príncipe Real, viu a tal velha pegar a folha de uma árvore e imitou-a. A partir desse gesto espontâneo, Tiago Rodrigues pôs em marcha uma máquina de ficção que, ainda assim, respeita as impressões reais dos 16 suíços acerca de Lisboa, importando para o texto “pessoas que conhecemos, outras que eles observaram e levaram para a sala de ensaios”.

O encontro entre Tiago Rodrigues e a escola suíça La Manufacture começou com um convite para a preparação de um espectáculo final de curso – como agora acontece – mas a que o português, por razões da sua posição no Teatro Nacional e de agenda, não tinha ainda conseguido dar resposta. A situação alterou-se quando foi colocada em cima da mesa a hipótese de uma turma de finalistas vir trabalhar consigo para Lisboa. “Isso já fez mais sentido”, diz o autor e encenador ao PÚBLICO, “porque me permitia trabalhar com eles no contexto do Teatro Nacional, dando-lhes a conhecer o trabalho que se faz aqui, levá-los a descobrir a Mónica Calle, o Tónan Quito ou a Christiane Jatahy (que alguns conheciam, mas viram aqui a trilogia). E seduziu-me a hipótese de podermos fazer um trabalho sobre Lisboa, através do olhar deles sobre a cidade.”

Uma vez iniciados os trabalhos, a escrita de Tiago Rodrigues respondeu a duas premissas fundamentais: a de respeitar as características particulares de uma peça que marca o fim de um percurso escolar, tendo de garantir que as participações de cada um são equilibradas, sem protagonistas evidentes; e a de, precisamente, o texto ser erigido a partir de um diálogo entre visitantes e anfitrião acerca de Lisboa, passando por “questões actuais de alojamento ou expulsão de inquilinos”, mas incluindo também um mergulho na História do século XX português, nomeadamente na cidade como cenário da Revolução.

O desencontro com a cidade

Tomando a ideia de espectáculo final como mote vago para o texto, Tiago Rodrigues escolheu organizar a peça numa série de cartas de despedida que permitem a cada actor ou actriz ter um solo por sua conta, momentos entremeados com excertos de O Cerejal, de Tchékhov – escolhido devido à óbvia relação com as datchas que eram o local de veraneio da burguesia russa. O espectáculo desenha-se, portanto, como o abandono da ideia inicial de encenar O Cerejal, do qual restam apenas alguns fragmentos, sendo tomado de assalto por uma obsessiva tentativa de reencontro.

Os efeitos da repetição – a cada dia, a cada solo, a carta de despedida vai adoptando um tom mais desesperado – trazem à memória o livro Douleur Exquise, da artista Sophie Calle, montado a partir de um dispositivo semelhante. Tiago reconhece a sombra dessa obra (que está na origem de um dos espectáculos da sua vida, Exquisite Pain, dos Forced Entertainment) mas faz notar que os textos correm, na verdade, em sentidos contrários. “Ao contrário do Exquisite Pain, aqui a dor não é anestesiada, vai mesmo sendo construída”, diz. “Acho que isso é algo de tremendamente português. Temos tendência para uma poética que faz lembrar aquelas crianças que choram ao espelho porque gostam de se ver chorar. A cultura portuguesa é particularmente sublime nessa capacidade de explorar o filão da dor.”

Tudo Acontece… lê-se também como o texto de um lisboeta que se sente desencontrado da sua cidade. Qualificando a sua relação com Lisboa como “muito entusiasmada”, gabando-lhe a sua “abertura ao outro – sendo uma cidade tanto de partida como de chegada”, o autor confessa que, em paralelo, “é uma cidade que se está a transformar muito rapidamente num parque temático, fácil de consumir, para quem só esteja cá dois ou três dias”. “Sendo um lisboeta que adora ter muitos turistas na cidade, questiono-me muito sobre a forma como a própria cidade se transforma para melhor servir esses turistas, de uma forma que não é só submissa, é de obediência a uma lógica de capitalismo selvagem. Esta vertigem faz com que um dos grandes problemas de justiça social seja não só a questão da habitação, mas também o projecto de cidade, como é que queremos viver a partir de hoje.”

Numa peça em que um alfarrabista fecha as portas para dar lugar a um Alfarrabista Hotel Boutique Design, imagem de “uma espécie de ditadura imobiliária” que faz do centro histórico “um lugar para turistas e gente muito rica”, a ameaça sobre a vida de Lisboa é uma constante. Uma ameaça que, diz Tiago Rodrigues, o levará a “perder toda a esperança em relação ao futuro desta cidade” no dia em que a casa que serve “a melhor bifana de Lisboa”, mesmo em frente ao Teatro Nacional, se transformar numa loja de souvenirs. Nesse instante, para uns e para outros, não haverá mais do que memórias.

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