Um ministro à procura de si próprio?

Depois de um ministro da Saúde que aplaude uma greve de médicos, eis um ministro da Ciência que subscreve – mas não implementa – um apelo a alterações que dependem... dele.

Em 2012, uma turista envolveu-se, enquanto voluntária, nas acções de busca que visavam encontrá-la. Foi na Islândia: depois de uma noite inteira de buscas, o sucesso chegou quando a turista se apercebeu de que era dela própria que estavam à procura.

Somos lembrados desta história quando lemos que o ministro para a Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, subscreveu o Manifesto Ciência Portugal 2018. O Manifesto apela à regularização, transparência e desburocratização dos concursos para financiamento (de projectos, unidades e individuais) e à revisão do Código dos Contratos Públicos, adiantando propostas concretas.

Depois de um ministro da Saúde que aplaude uma greve de médicos, eis um ministro da Ciência que subscreve – mas não implementa – um apelo a alterações que dependem... dele. 

Partindo do princípio que o ministro não sofre de dupla-personalidade, o que o levará a esta aparente busca de si próprio? Adiantamos três hipóteses que provavelmente se complementam:

1. O Ministro Gramsciano. Numa leitura baseada nas ideias do filósofo italiano Antonio Gramsci, trata-se de um exemplo de “incorporação ideológica”: Manuel Heitor subscreve o Manifesto para se apropriar dos seus argumentos. Ao fazê-lo, não só esvazia a argumentação utilizada como também o poder de resistência e contestação. A consequência perversa desta estratégia é fazer diminuir a motivação para contestação mesmo na ausência de mudança.

2. O Ministro Bloqueado. Manuel Heitor compadece-se verdadeiramente da comunidade científica porque ele próprio, como sublinha recorrentemente, é parte dela; mas está impedido de agir ao ponto de nada mais lhe restar do que subscrever, também recorrentemente, os apelos que lhe são feitos. Neste caso, quem impede Manuel Heitor de agir? Serão os seus colegas de Governo ou um ministro em particular? E se, ao fim de mais de dois anos de mandato, o ministro não conseguiu força política suficiente para implementar o programa que defende, o que está ainda a fazer no Governo? Porque não denuncia quem o bloqueia e apresenta a sua demissão?

3. O Ministro Oportunista. O Ministro subscreve o Manifesto porque este ignora duas lacunas principais do seu mandato: a efectiva concretização de medidas de combate à precariedade que abrange a larga maioria dos profissionais da comunidade científica – investigadores, técnicos, docentes, comunicadores e gestores de ciência; e a clarificação de um modelo para a articulação entre Investigação e Ensino Superior, com vista à criação de um verdadeiro Sistema de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, com instituições de carácter jurídico equivalentes e contratações reconhecidas como trabalho, definidas dentro de carreiras. Para um manifesto que pretende representar as dificuldades sentidas pela comunidade científica portuguesa, ignorar estas lacunas é infeliz. Mas, para Manuel Heitor, foi uma oportunidade: de todos os manifestos possíveis dentro do estado a que chegámos, esta versão parcial da realidade é a menos danosa. 

Não sabemos se o ministro se encontrará. Não sabemos sequer se se procura ou se, perdido no seu labirinto, descobrirá o caminho para o final do mandato. Mas, ao contrário das equipas de busca da turista na Islândia, reconheceremos de imediato um ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior quando finalmente tivermos direito a um. Membros da Rede de Investigadores Contra a Precariedade Científica

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