Robots numa galeria de arte para dar umas “bofetadas” no real

Fotojornalista espanhol começou a criar robots a partir de materiais reciclados quando ficou desempregado. E, um dia, a terapia virou trabalho. A sua Fábrica de Androides invadiu agora o Porto

Nuno Marques/ Cruzes Canhoto
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Gran Sátrapa
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Gran Sátrapa

Foi como uma “terapia” de resposta ao panorama pós-apocalíptico da sua vida depois de uma crise encenada em três actos. Ou a toda a escala: global, profissional, pessoal. Gran Sátrapa — pseudónimo artístico pelo qual prefere ser tratado — foi apanhado num despedimento colectivo no jornal onde era fotojornalista há vários anos. A crise estava instalada na Europa, tinha-se infiltrado na comunicação social (também a braços com a revolução tecnológica que tudo mudou) e atingido os seus dias em cheio. Ele tinha 55 anos. “Foi um momento terrível. Estava muito perdido, deprimido, frustrado.”

Naquele ano de 2013, encontrar trabalho como fotógrafo era missão quase impossível. E então Sátrapa, galego natural de Santiago de Compostela, pôs-se a desenhar e a pintar para escapar à depressão. Nas folhas e pedaços de madeira onde criava foram surgindo rostos dos responsáveis pelo seu despedimento, dos directores do meio onde trabalhava. Também de gente que, como ele, tinha perdido o emprego.

Um dia, quase um ano depois do início daquelas experiências, ocorreu-lhe fazer algo em três dimensões e “saiu o primeiro robot, com um aspecto marciano”, contou ao P3 numa entrevista telefónica. “Começaram a surgir umas histórias fantásticas, dava-lhes nomes, mostrava-os nas redes sociais. E tudo isso acabou no que é agora a minha vida.”

Gran Sátrapa já fez germinar 394 criaturas, “todas numeradas, com data de nascimento e um nome”. Algumas delas “invadiram” em Abril a Galeria Cruzes Canhoto, no Porto (Rua Miguel Bombarda, 452). Até 28 de Julho, 50 robots e 25 quadros estarão expostos e à venda na galeria portuense dedicada a obras de arte bruta, primitiva e popular. Negociada está também a permanência destes ou de outros robots nas lojas de design de autor de alguns dos principais museus do país.

Uma viagem feliz a feita de Santiago ao Porto, diz Gran Sátrapa, apaixonado pela cidade nortenha: “Se pudesse ia viver para o Porto”, confessa com a justificação explanada logo de seguida. “Tem a Ribeira, aqueles tascos maravilhosos, tem mar, uma luz espectacular, a gente, a comida, os contrastes, os cheiros.” Tudo perfeito, portanto, não fosse a onda de sucesso turístico que também os espanhóis têm visto em algumas das suas cidades: “A única coisa que me deixa triste é o tema da gentrificação. Há demasiado turismo e isso está a mudar a cidade e a acabar com coisas muito bonitas.”

Palavras de quem se recusa a deixar de lado uma visão crítica da realidade. “Aproveito sempre para dar umas bofetadas aos políticos, aos reis, a todas as coisas erradas”, comenta. Foi precisamente com uma dessas críticas que o trabalho dele ganhou expressão. Quando Sátrapa criou um robot de nome Mariano não esperava aquela visibilidade. A mensagem tinha o presidente Rajoy como destinatário e acabou como imagem de um festival de arte fantástica em Santander. Nesse ano de 2015, o fotojornalista começou a levar “mais a sério” aquilo que ia alimentando por lazer.

Fazer rap com a pintura

Se aquilo que faz fosse música seria certamente um rap, diz. “Faço rap com a pintura. É tudo muito selvagem, muito radical”, calcula: “Considero-me um intruso no mundo da pintura e desenho. Nunca estudei nada disso, não tenho formação académica.” Foi uma questão de oportunidade: “Sempre gostei de desenhar mas nunca tive tempo nem oportunidade [de me dedicar a isso]. Até que, de repente, aos 55 anos, encontrei um momento em que tinha tempo e algo na cabeça para desenhar.”

Foto
Gran Sátrapa

A matéria-prima da sua Fábrica de Andróides vem do desperdício. Latas de conserva, computadores obsoletos, rádios de outros anos, electrodomésticos sem uso, lâmpadas, garfos, relógios, madeira, caixas de Smint. É parte de um “compromisso” assumido com o meio ambiente, “uma mensagem para as pessoas, para que reciclem”. Na colecção não se encontram dois robots idênticos e todos nascem por criação espontânea: não há desenhos e planos prévios — cada uma vai sendo o que a imaginação ditar. E aceitam-se também encomendas para momentos especiais.

O exército de Sátrapa já chegou a quase todo o mundo. Além das exposições — neste momento está no Porto, em Nantes e em Vigo —, o galego vende para qualquer geografia a partir do seu site. Da terapia nasceu um emprego. Não tão distante da missão de representar o real pedida a um fotojornalista. É que, olhando bem, diz Sátrapa, a vida em Marte que tantos anseiam pode não ser ainda real. Mas já estamos a ser governados por verdadeiros marcianos.

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