Anos sessenta – um legado

Como dizia uma colega francesa, que estudou em Nanterre e participou nos acontecimentos desde o início, “quando nos fartámos de servir cafés aos nossos colegas tornámo-nos feministas”. Um ensaio de Lígia Amâncio

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A década de sessenta foi a década da juventude. Após os anos de terrível privação do fim da guerra e do período da reconstrução chegava ao ensino superior a geração do baby boom, a primeira que tinha tido oportunidade de percorrer a escolaridade até à Universidade sem interrupção. No entanto, e apesar do ambiente de expansão económica e no meio de um período de bem-estar, onde tudo parecia retomar o seu lugar na velha ordem burguesa, esta nova geração iria surpreender as forças conservadoras com uma rebelião que se fez sentir, dentro e fora das Universidades. A contestação de um certo estilo de vida, conforme com a cultura dominante e obediente às convenções, surgira desde o início da década, com diversas expressões culturais ou artísticas, como os hippies nos Estados-Unidos ou os fabulous four em Inglaterra. Nada mais chocante para as classes dominantes, do que ouvir make love not war num tempo em que a sexualidade era tabu, ou ver os rapazes de cabelos compridos, numa despreocupada aproximação da aparência dos dois sexos que a sociedade tanto se empenhava em tornar distintos.

Em França, o movimento de Maio de 68, que começa por uma contestação ao autoritarismo dos professores, evolui em poucos dias para a confrontação com as forças policiais e com o governo face à repressão que se abate sobre os estudantes. Também aqui as Universidades tinham respondido ao aumento da população estudantil com a cultura de antes, assente num sistema hierarquizado e repressivo que tratava os alunos como seres passivos e dependentes do saber que os chamados mandarins faziam o favor de lhes transmitir. O grau de politização e de confronto confere ao movimento dos estudantes parisienses uma singularidade única, que ainda revelou a capacidade, efémera é certo, apesar da ausência de estrutura partidária ou orientação programática, de atrair outros sectores da sociedade, que vão engrossar o movimento ao longo do mês e o levam a paralisar o país. Em comum com outros movimentos da década, todavia, partilhavam um desejo de liberdade, uma vontade de rutura com o conservadorismo da década de cinquenta, de emancipação sexual e de mudança nas relações entre homens e mulheres. Como tão bem mostra a série Mad Men para a sociedade americana, os anos cinquenta caracterizaram-se por uma cultura onde nada, nem ninguém, parecia estar fora do lugar que lhe era atribuído, era fortemente punido quem se atrevesse a ir contra esta regra, tudo acontecia de acordo com um guião previamente definido e os destinos pessoais eram marcados e limitados por normas e convenções. Um ambiente onde prevaleciam os valores do dever e da obediência e uma moral sexual fortemente repressiva que tornava as relações entediantes e a existência sufocante. A sociedade francesa, normativa e conservadora, não se distinguia muito deste modelo.

Uma coisa que chama a atenção nos registos dos acontecimentos de Maio é a presença das mulheres nas manifestações e ações públicas, em aparente igualdade com os homens. É verdade que elas partilhavam o espaço público e a rua, depois de anos de segregação, mesmo nos meios universitários – muitos anos mais tarde, lembro-me de ver numa residência da Cidade Universitária, em Paris, uma porta desativada que me explicaram ser a antiga separação do andar que fora exclusivo das mulheres. Mas apesar deste enorme progresso estávamos longe da igualdade entre homens e mulheres, já que as mulheres eram vistas, mas não eram ouvidas e continuavam numa posição subalternizada. Como dizia uma colega francesa, que estudou em Nanterre e participou nos acontecimentos desde o início, “quando nos fartámos de servir cafés aos nossos colegas tornámo-nos feministas”. O desejo de liberdade que sustentou o movimento foi efetivamente determinante para tornar ainda mais evidentes os condicionamentos de outras liberdades, como as das mulheres, que Simone de Beauvoir denunciara anos antes.

Por feliz convergência histórica, o desenvolvimento da consciência feminista ocorre em simultâneo com a chegada das mulheres à academia. Porque é também na década de sessenta que, após crescimentos e recuos ao longo do século XX, o número de doutoramentos de mulheres aumenta significativamente, em França como nos Estados-Unidos, abrindo, para muitas, a oportunidade da carreira académica. Não que elas tivessem tido percursos escolares interrompidos devido às guerras, como acontecera com os homens ao longo do século, mas porque o levantar dos vários impedimentos ao acesso das mulheres à educação foi um processo lento e penoso. Nos Estados-Unidos e na Inglaterra a proibição da presença das mulheres por parte das instituições de ensino superior tinha sido contornada com a criação de instituições femininas, mas quando elas acediam ao ensino era preciso lutar, em seguida, pelo acesso aos exames e, depois ainda, pelo reconhecimento dos diplomas, numa permanente corrida de obstáculos.  Em França, onde não havia tradição de segregação no ensino, os obstáculos também existiam. Com elas chegam igualmente à academia membros de minorias por força do prolongamento da escolaridade e da democratização do ensino.

Numa posição de sobre minoria, por vezes representantes únicas de um sexo diferente, a geração pioneira de académicas vai ter a vida muito dificultada nas instituições onde chega, cheia de esperança na capacidade transformadora da ciência. E onde se confronta com uma realidade sintetizada no slogan dos estudantes alemães, de 68 - debaixo das togas, o mofo de milhares de anos. As instituições de ensino superior tinham permanecido imunes à agitação à sua volta, a presença numérica dos homens, obviamente brancos, e simbólica do masculino era esmagadora, e a investigação que se fazia tinha pouca ligação à sociedade, como nos contam algumas destas figuras nas suas memórias.  Foi preciso, antes de mais, conquistar um lugar como parceiras científicas, num ambiente que as tratava preferencialmente como parceiras sexuais, visto que, como relata uma psicóloga que foi admitida em Harvard nos anos sessenta, no laboratório, até os ratos eram machos. Depois foi preciso ter a coragem de fazer perguntas diferentes e tentar responder às questões que os movimentos sociais colocavam.

Já não era apenas a relação entre professores e estudantes que estava em causa, mas também a constatação de que o conservadorismo das instituições universitárias se refletia nas limitações impostas à liberdade de pensamento e nos condicionamentos em torno dos objetos de estudo e das agendas científicas. E, no entanto, a diversidade de experiências e trajetórias desta nova geração não podia deixar de gerar novas dúvidas e inquietações que encontravam fortes resistências institucionais para se afirmar. Apesar desse ambiente hostil e graças à resistência de algumas figuras da nova geração de investigadoras e investigadores, as ciências sociais e humanas vão conhecer uma explosão de produção científica em torno das questões da injustiça e desigualdade sociais que tinham mobilizado os movimentos pelo alargamento de direitos nos anos cinquenta, nos EUA e nos anos sessenta, nos EUA e na Europa. Com este passo, os movimentos contribuem, no plano institucional, para uma reestruturação das ciências sociais e humanas, para a reorganização das próprias instituições, para além de criarem, no plano científico, novas agendas que irão permitir avanços do conhecimento, abrir novas perspetivas teóricas, desenvolver novas competências e áreas de ensino e ainda fornecer uma base de conhecimento para as políticas públicas de combate às desigualdades que irão ser desenvolvidas, nos anos setenta, a nível nacional e internacional.

Os movimentos da década de sessenta abriram uma fissura num dique. Foram, como diz Daniel Cohn-Bendit referindo-se ao movimento de Maio de 68, um acelerador da história. A associação dos acontecimentos aos seus principais protagonistas reforçou o sentido da nova categoria sociológica que surgira com o aumento da escolaridade, a da juventude, para designar essa fase etária entre a infância e o mundo adulto, que se caracteriza pela dependência económica e a presença no sistema escolar. Em resultado dos acontecimentos da época criou-se o estereótipo da juventude como uma fase etária necessariamente rebelde e portadora de desejo de mudança. Isso, no entanto, não passa de um mito, pois muitas outras gerações jovens, antes e depois da década de sessenta, foram conservadoras e passivas em relação à ordem dominante. Mas a rebeldia e o desejo de mudança da juventude dos anos sessenta, da juventude universitária em particular, foram sem dúvida determinantes para uma onda de transformações sociais absolutamente únicas que marcaram decisivamente a cultura das nossas sociedades e as nossas vidas. 

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