Os direitos humanos no nosso prato

Ao decidirmos aquilo que compramos e colocamos no prato, comunicamos a nossa posição face a alguns dos maiores problemas que enfrentamos enquanto civilização

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Eaters Collective/Unsplash

A forma como comemos pode estar ligada com os direitos humanos e a protecção dos mesmos? A resposta poderá não ser muito intuitiva. Reconhecemos, claro, que a alimentação sadia e equilibrada é um direito universal de todos os humanos, consagrado em declarações subscritas internacionalmente pela maioria das nações do mundo. Sabemos também que a alimentação é ostensivamente objecto de violações dos direitos humanos, sobretudo quando falamos de países subdesenvolvidos. Em estimativa, cerca de 793 milhões de pessoas enfrentam escassez de alimentos a nível mundial e cerca de três milhões de crianças sofrem uma morte prematura devido à subnutrição. Será esta realidade inevitável?

A subnutrição que afecta milhões de pessoas é um tema com o qual somos confrontados desde muito pequenos na sociedade ocidental pelos pais e educadores que nos relembram, com o aguilhão do remorso, da importância de não desperdiçarmos aqueles restos de comida no prato, associados indelevelmente à figura das crianças que sofrem de fome severa. Sabemos que o direito à alimentação é um direito de todos, mas também sabemos que nunca foi um direito de todos.

Muito pode ser dito e já foi amplamente dissertado sobre as causas da escassez de alimentos em várias regiões do planeta. Aponta-se o dedo, claro, ao desperdício, que é sem dúvida um dos principais arguidos. Mas será o único? E o que comemos? E aquilo que colocamos no prato? Estará também relacionado?

O fenómeno da escassez de alimentos pode ter tanto a ver com o desperdício como com a forma como os produzimos, utilizamos e distribuímos. Com o aumento populacional e a limitação dos recursos planetários, este parece ser um problema que tenderá a agravar-se. Num relatório de 2009, a FAO afirmou que será necessário ampliar a nossa produção alimentar em 60% para saciar uma população em crescimento, que deverá atingir os 9.1 mil milhões em 2050.

Mas será de facto necessário escalarmos a nossa produção alimentar? E isso resolverá todos os problemas a montante, ao nível da distribuição? Na verdade, actualmente, já produzimos comida suficiente para alimentar uma população de 9.1 mil milhões, vaticinada para 2050. E bem para além desse número. Toda a produção agrícola mundial, quando contabilizada no seu total, seria suficiente para alimentar cerca de 10 mil milhões de pessoas. A resposta, portanto, está na forma como utilizamos e distribuímos estes alimentos.

De toda a produção mundial, cerca de 36% (mais de um terço) das calorias produzidas são destinadas à agropecuária, para alimentar os animais que se destinam ao consumo humano, ao passo que apenas 12% do total das calorias são utilizadas directamente para alimentação humana. Para mais, o gado domesticado ocupa cerca de 40% do terreno arável no mundo. Se produzíssemos alimento exclusivamente para as pessoas e libertássemos parte deste terreno, poderíamos aumentar a disponibilidade global de alimentos em 70%, suficiente para alimentar todas as pessoas do mundo, mesmo com uma população em crescimento.

A ideia poderá parecer disparatada ao consumidor inveterado de animais, mas se nos preocupamos genuinamente com o problema da escassez de alimentos, não podemos voltar as costas a esta realidade. Produzir animais para a alimentação não só requer um consumo de quantidades incríveis de recursos, como é um processo extremamente ineficiente de conversão energética, estimando-se que a produção de um quilograma de carne de vaca, a título de exemplo, requer entre 2,8 a sete quilogramas de alimento.

O que colocamos no prato comporta ainda outras problemáticas raramente pensadas quando se fala de direitos humanos. A produção animal tornou-se num processo altamente industrializado e agressivo nas últimas décadas, não só para os animais mas também para o ambiente e para as pessoas envolvidas na produção. Os empregados de matadouros de todo o mundo trabalham em condições difíceis, imersos num ambiente extremamente violento e obrigados a desempenhar tarefas extremamente repetitivas e automáticas. Apresentam um dos mais elevados índices de acidentes de trabalho, stress laboral, sintomas depressivos e desgaste emocional e físico. Realizam um trabalho que a restante sociedade relegou neles.

E não é menos importante a forma como esta realidade se manifesta na sua etapa final, após os alimentos chegarem ao prato do consumidor. Actualmente, o consumo de carne e de outros produtos de origem animal atingiu proporções colossais, bem para além dos limites aconselháveis por qualquer entidade credível no ramo da nutrição, com consequências catastróficas para a saúde humana. Este consumo excessivo está correlacionado com algumas das principais causas de morte prematura no Ocidente e atingiu dimensões globais e epidemiológicas. E expressa em si um problema humanitário que é urgente abordar.

A solução, como vemos, poderá passar por repensar a forma como utilizamos os alimentos e não por escalar a produção, esticando-a além dos limites planetários. As nossas escolhas alimentares não só estão relacionadas com os direitos humanos, como são actos com significância política e de consequências expressivas para milhões de pessoas em todo o mundo. Ao decidirmos aquilo que compramos e colocamos no prato, comunicamos a nossa posição face a alguns dos maiores problemas que enfrentamos enquanto civilização.

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