A caminhada de uma vila desafiada a agarrar o futuro

Investimento do Desp. Aves precisou de tempo para vingar, mas o clube fechou as contas com época histórica, plena de curiosidades, apesar das três equipas técnicas e de uma revolução no plantel.

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EPA/ANTONIO COTRIM

A época de 2017-18 do Desp. Aves vai ficar registada nos anais da história como a mais bela de todas as campanhas do emblema da vila que ontem foi agraciado pela Câmara de Santo Tirso, com uma recepção aos heróis do Jamor. A homenagem cumpriu-se, mas a caminhada avense começou muito antes, ainda sob o comando técnico de Ricardo Soares. Foi ele o co-responsável pela reestruturação de um plantel ambicioso, com um investimento a condizer, equiparando-se ao do V. Guimarães.

O treinador que levara o Desp. Chaves a bom porto (permanência e meias-finais da Taça), rodeou-se de alguns dos profissionais que o ajudaram a singrar em Trás-os-Montes. Em termos desportivos, as curiosidades não tardaram. O baptismo incluiu um derby, para a Taça da Liga. Uma estreia pouco feliz, com uma derrota tangencial em Moreira de Cónegos. Arranque que José Mota vingaria na penúltima jornada, ao golear (0-3) os “cónegos” em pleno Comendador Joaquim de Almeida Freitas, garantindo logo aí o primeiro objectivo e marco histórico da permanência… inédita na vida do Desp. Aves.

Na mesma linha, podemos agora evidenciar a coincidência de ter aberto o campeonato frente ao Sporting, precisamente o adversário que encerrou uma campanha de sucesso. Mas a derrota frente aos “leões” seria apenas o prenúncio de uma falsa partida na Vila das Aves, onde feitas as contas mora a equipa (em igualdade com Estoril e Tondela) com a prestação mais modesta entre portas.

Dificuldades em casa

Com um calendário exigentíssimo — derrotas com Sporting e Sp. Braga e nulo com o Rio Ave, apenas atenuado pela vitória sobre o Belenenses —, o factor casa precipitaria a primeira mudança técnica. Ricardo Soares cedia o lugar a Lito Vidigal, que viveu o mesmo drama caseiro. A história de Lito e o principal contributo para o sucesso do Desp. Aves começa com a Taça de Portugal, numa sofrida qualificação em Vila Real, com o esboço do Jamor a nascer de um autogolo aos 86 minutos. Na Liga, com oito pontos em 11 partidas, Vidigal resvalava a cada derrota caseira. O melhor foi mesmo o empate com o FC Porto. E Lito só não encerrou o ciclo em Alvalade porque o Desp. Aves vinha de um apuramento épico nos quartos-de-final da Taça de Portugal, em Vila do Conde.

Ironicamente, o Rio Ave aproveita agora um erro de programação avense para agarrar a Europa. Mas, a 10 de Janeiro, foi mesmo o Desp. Aves a revelar mais competência, no único jogo (em seis) que não venceu na Taça de Portugal. O empate (3-3) no período regulamentar chegou como um relâmpago em noite de tormenta. Os locais venciam, por 3-1, a 16 minutos do fim e foram, ainda assim, forçados a um prolongamento e ao desempate por marcação de penáltis, porque o adversário empatou em dois minutos (88’ e 90’).

Apesar do feito, Lito Vidigal entrou numa espiral que o consumiu espontaneamente em Paços de Ferreira, depois de até ter sido noticiada a renovação, que acabou substituída por um processo disciplinar e despedimento, sem que tivesse alcançado uma única vitória em casa. Era chegada a vez de José Mota, sob a capa de coordenador, forma encontrada para contornar obstáculos burocráticos. À mercê da guilhotina, a derrota na estreia, em Braga, atirou a equipa para os lugares de despromoção. Porém, o estigma da casa assombrada estava prestes a desaparecer.

À primeira tentativa, Mota arrumou o Boavista com a primeira de quatro goleadas (duas em casa e duas fora), parâmetro em que só FC Porto, Sp. Braga e Benfica superaram os avenses. Em matéria de “rankings”, até para compensar a frustração caseira, o Desp. Aves orgulha-se de ser o sétimo com melhores resultados enquanto visitante.

Mas com a vitória sobre o Boavista surgia uma nova página. Até final, restavam 13 jogos para cumprir o desígnio e romper com a tradição de descer um ano depois de subir. No campo cabalístico, o número 13 revelar-se-ia fundamental. Assim, depois de conquistar 20 pontos em 15 desafios, José Mota oferecia o 13.º lugar na Liga. “Azar” que que outros não desdenhariam. Para cúmulo, a história reservou outro 13 para os avenses, que ao conquistarem a Taça de Portugal na primeira vez em que chegaram a uma final, se tornaram no 13.º clube a erguer o troféu.

Quase 40 jogadores

Mas para isso houve todo um processo de recrutamento que fez do Desp. Aves um dos mais activos emblemas no mercado. Das quase três dezenas de futebolistas que concluíram a época (chegou a ter cerca de 40 profissionais), raros são os casos de jogadores que não chegaram pela primeira vez à Vila das Aves. Quim e Alexandre Guedes — heróis do Jamor — são duas das excepções, a par de Falcão, vindo da equipa B. Isso traduz um investimento e um esforço de uma ordem de grandeza que só foi possível atingir graças ao investidor chinês, representado por Wei Zhao.

Embora os valores necessários para fazer face a uma operação deste nível atinjam uma fasquia próxima dos oito milhões de euros, canalizados para o futebol profissional, não devem ser desprezadas as verbas gastas na modernização do estádio e no Centro de Estágio projectado para a Quinta dos Pinheiros, orçado em 3,5 milhões de euros, que incluiu três campos de treino e uma unidade hoteleira com 50 quartos, num crescimento sustentado que o Desp. Aves tem de agarrar com a mesma alma que segurou a Taça.

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