O verde e branco a brilhar bonito numa parede tão feia

Perante o que aconteceu ao longo da semana, perante o que ouvi durante a final, é a pequenas imagens de jogadores de verde e branco que volto para me preservar, para preservar o Sporting que é o meu e que quero que continue a ser o meu.

O pior não foi a derrota, porque isto era só um jogo e havia coisas mais importantes a tratar. No Jamor, importava resgatar alguma coisa, um espírito, uma luz de esperança, uma reconciliação com o clube e com a ideia de clube que esta semana foi atacada e dinamitada de uma forma que deixará marcas terríveis, espero que não irreversíveis. Portanto, no Jamor, na mata do Jamor onde se organiza a festa mais bonita do futebol português, com gente a chegar de todo o país de madrugada para assentar arraiais e partilhar a felicidade que traz o belo jogo entre a comida na grelha e a bebida no copo, tentava recuperar esse espírito, viver esse espírito, tactear uma qualquer inocência perdida há muito, mas que continua a ser a ilusão que, apesar de tudo, apesar da podridão reinante em todo mundo da bola, permite que continuemos a apaixonar-nos pelo desporto que é mais um desporto.

Esse era o objectivo e foi cumprido como habitualmente — carro estacionado às 9 da manhã, grelha e arcas frigoríficas carregadas desde a dois quilómetros de distância, festa popular instalada às 10h. O outro objectivo parecia-me também muito simples e, julgava eu, consensual. Dar desde as bancadas um abraço aos nossos em campo, aos jogadores que sofreram esta semana uma violência inaudita, sequestrados e agredidos em sua própria casa por um bando de marginais a quem se dá demasiada importância e liberdade de acção. Só o facto de estarem ali a jogar, perante um digníssimo Desportivo das Aves cheio de vontade de fazer história, como acabou por fazer, já me merecia o agradecimento. Queria ganhar, mas isso era, neste caso, secundário — há coisas mais importantes que ganhar, isso me ensinou o sportinguismo, e ali, mais que a vitória, era o Sporting que interessava.

Mas depois, na bancada, fui ouvindo, mais vezes do que desejava ou julgava possível, adeptos de verde e branco como eu falar de “falta de profissionalismo”, de “eles não querem e isto é uma vergonha”. Ouvi até piadas que me enojaram sobre a violência de terça-feira. Parecia que, afinal, isto era apenas uma final e que nada de especial tinha acontecido (coisas chatas do futebol, nada mais, “eles são pagos para jogar” e se não ganharam não passam de uns “merdas ingratos”). Parecia que não tinham sido atacados os princípios que nos foram legados sobre o que é o Sporting, parecia não ser a própria ideia de Sporting a ser posta em causa por toda a sucessão de acontecimentos da semana passada.

Claro que não eram a maioria. Claro que muitos pareciam perceber o que estava em causa. Mas eram muito mais do que julgava possível, muitos mais a manifestarem uma total falta de empatia, uma exigência absurda para com aqueles jogadores, um discurso de futebolês moderno, misto de lógica económica empresarial (o tal eles ganham muito, são empregados do clube e por aí fora) e a incendiária culpabilização de quem perde, porque isto é uma guerra e nem se fale em mérito do adversário, porque o adversário não tem virtudes, só serve para medir o nível da nossa incompetência. 

O trabalho obrigou-me a sair do estádio com o jogo ainda a decorrer. Triste por sair mais cedo, triste por sair depois de ouvir aquilo que ouvi, triste por estar a perder 2-0 e triste por, eu que nunca saio antes do apito final, ter que o fazer no jogo em que era mais importante ficar para aplaudir os nossos de verde e branco, eles que tentaram em campo e que acabaram o jogo em lágrimas. Ficar também para dar os parabéns ao pessoal do Aves, ficar pela festa pela qual lutaram e pela luta que os nossos deram num esforço final. Ainda saltei a meio do caminho para o carro, punho erguido no ar, quando ecoou no vale do Jamor o golo do Montero. Liguei o rádio, esperei por um segundo golo, mas ouvi sem prestar toda a atenção. Na minha cabeça passavam outras imagens. Foram chegando terça-feira, enviadas pela João, que não percebe nada de futebol e que, como me ia escrevendo, não tem memórias de golos gloriosos ou de passes impossíveis, mas sabe distinguir o certo do errado, o feio do bonito.

Naquele dia trágico para o meu sportinguismo, enviou-me imagens de um tapume da cidade sempre em obras, um bocado de chapa banal, igual a todas. Discretas a polvilhar o cinzento, estavam umas fotos pequenas coladas entre riscos quase tags e tags quase riscos. Era o Yazalde, o Livramento, o Cristiano Ronaldo ainda miúdo, o João Mário já patrão, os festejos da Taça de 1995 e alguns outros e outra que não reconheci, mas que têm o equipamento verde e branco. Ela corredora do nosso histórico atletismo, eles, pela imagem, parecem dos anos 1960 (pode ser o Mário Lino, ou o Morais, ou o Osvaldo Silva ou o Hilário — tenho que ir lá confirmar). Não interessa, na verdade. São jogadores captados nos mesmos movimentos que os jogadores têm desde o início dos tempos da bola e que os meus avós coleccionaram nos papéis dos rebuçados, que os filhos deles viram nos jornais e, ocasionalmente, na televisão. Os mesmos que eu colei nas paredes, recortados de revistas e jornais, antes de bandas lhes tomarem o lugar.

“Parecem aqueles recortes e colagens que fazemos dos nossos ídolos na adolescência”, escreveu a João. Era exactamente isso e foi a isso que me agarrei naquele dia. A umas pequenas imagens de jogadores de verde e branco, tão bonitos e solares, discretos numa parede tão feia. Perante o que aconteceu ao longo da semana, perante o que ouvi durante a final, é a elas que volto para me preservar, para preservar o Sporting que é o meu e que quero que continue a ser o meu. Neste momento, resta-me isso: pequenas imagens a brilhar um pouco numa grande parede tão feia.

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