A missão da água

O primeiro romance de José Gardeazabal é um livro profundamente político, alegórico, irónico e aforístico.

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O gosto de José Gardeazabal pela alegoria surge bastante amplificado e multiplicado no seu romance de estreia ENRIC VIVES-RUBIO/ARQUIVO

José Gardeazabal — pseudónimo literário de José Tavares (n. 1966) — estreou-se na literatura com a publicação do livro de poesia História do Século XX (INCM, 2015), a que se seguiram Dicionário de Ideias Feitas em Literatura (Relógio D’Água, 2016) e o conjunto de peças de teatro Trilogia do Olhar (INCM, 2017). Meio Homem Metade Baleia é o seu primeiro romance. Se em muitos dos seus textos anteriores, sobretudo nas quase duas centenas de entradas que compõem o Dicionário de Ideias Feitas em Literatura (e também em parte dos textos dramáticos) era bem visível o gosto pela alegoria, esse exercício surge agora bastante amplificado e multiplicado no romance. Não que Meio Homem Metade Baleia seja, por si, uma evidente alegoria à maneira platónica — em que o autor ao narrar uma história leva o leitor a lê-la com um outro sentido que não o expresso —, mas é, em vez, um acumular de pequenas alegorias que pode resultar (ou não, dependendo da leitura) numa outra alegoria. Como se o autor se divertisse na visível multiplicação de sentidos, ou num jogo irónico de ocultação/desocultação de um outro sentido maior com o leitor. Nada do que ficou escrito no livro quer dizer o que lá está.

A intriga do romance é quase nula: Jonas, funcionário de uma organização internacional, e a sua filha adolescente, Aliss, são conduzidos de carro, ao longo de um imenso muro, por um homem chamado Servantes. A missão que cumprem é a de levar água aos que dela precisam. A “paisagem plana, calma e miserável”, ladeada por um muro que divide os homens, vai dando o mote para que se alimentem as dúvidas sobre o significado de civilização e de humanidade. O cenário, nunca nomeado (é-o uma ou outra vez mas de modo claramente “enganoso”), parece ser o Médio Oriente, pois ali “próximo ecoava o registo histórico de um messias bebé que recebera ofertas de reis, debaixo de uma estrela, dentro de um estábulo”.

De certa forma, Meio Homem Metade Baleia trata da relação do homem com o tempo enquanto indaga sobre o significado de lugar, de país, de casa, de fronteira, de nacionalidade. Perdidos num deserto, ao longo de um muro “baço” mas que ao mesmo tempo funciona, metaforicamente, como um “espelho”, com um lado “certo” e um “errado”, recordando uma carnificina acontecida havia alguns dias, “os ouvidos de Jonas enchiam-se de ecos da palavra Mitteleuropa” e ele não percebia se a palavra nomeava um lugar ou um tempo. Ali, diante daquele muro, “naquele tempo bíblico”, também se evoca Berlim no meio do século XX, a “maldade mecânica”, os “mortos desamparados”.

Meio Homem Metade Baleia é um livro político. É-o porque a política é trazida para a narrativa parodiando o seu próprio discurso, confrontando-se com ele, desconstruindo-o, deixando à vista os lugares confortáveis e periclitantes em que se compraz, ironizando sobre os seus métodos. “Para Jonas a organização era a caridade disciplinada que procurara como quem procura cura. A versão cosmopolita e limpa do contrário de uma doença. O desejo de participar da generosidade organizada, baseada em argumentos técnicos e orçamentos sólidos e viagens intercontinentais. Sempre, sempre a promover o bem. A organização unida.”

A ironia em José Gardeazabal não é subtil, antes evidente, exagerada, declarada como recurso feroz de procura de sentidos, com vontade de baralhar, e de em extremo ser capaz de alterar fronteiras entre utopia e distopia; é assim que, só para referir um exemplo, as iniciativas de paz envolvem “dezenas de adultos numa só peça de teatro”. É uma escrita cerebral, quase desprovida de emoção, apelando muito à reflexão para ser lida — nisto levando ao extremo o estilo e o tipo de escrita de muitos autores originários da “Mitteleuropa”, que parecem tê-lo influenciado bastante. E é precisamente o uso continuado da ironia que “esvazia” a sua escrita de emoções. Mesmo os espaços deixados pela narrativa entre uma alegoria e outra acabam preenchidos por intertextualidades, por piscares de olho cúmplices ao leitor, por referências literárias — como as que faz com o nome e os títulos dos volumes da obra A Minha Luta, do escritor norueguês Karl Ove Knausgård, ao apelidar uma personagem de Kausgaar, “o representante da organização unida das nações”, e ao dizer que havia nele “suspeitas de luta, um pai péssimo que morrera, danças no escuro numa ilha [da infância]”. Outras referências, no campo da filosofia: “um filósofo alemão e coreano [Byung-Chul Han]” que citava um segundo filósofo “apenas alemão” [Peter Sloterdijk], tudo remetendo o autor para um “conceito de tempo heideggeriano” (a tese de doutoramento de Han foi sobre a obra de Heidegger).

Meio Homem Metade Baleia é também um livro aforístico, em que o autor vai exercitando frases de efeito (umas quantas quase a tocar o non-sense, se lidas fora de um contexto profundamente alegórico), mas não apenas. Algumas há que são uma espécie de máximas deixadas a esmo, como a frase “as metáforas são o erotismo das palavras”.

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