Licença para matar

O Parlamento não pode ser avestruz diante da Constituição. O problema deve ser seriamente enfrentado.

A eutanásia entrou no debate público nesta legislatura. Com muita pressa. E há boas razões para esperar que não fosse assim. Não há registo de o tema ter sido aflorado na campanha de 2015. Nem memória de proposta que, anteriormente, algum partido apresentasse.

Dizendo de outro modo, não há a mais leve legitimidade democrática para precipitar decisões legislativas sobre matéria tão fundamental, decisiva e final. Se à cabeça algo pode dizer-se das iniciativas apresentadas, que estarão em debate a 29 de Maio, é que não resultam de qualquer mandato democrático. Antes pelo contrário.

O Governo, que está na iminência de ver discutir matérias que modificariam radicalmente ângulos essenciais do Serviço Nacional de Saúde e da prestação dos seus cuidados, com implicações seriíssimas na sua organização e na sua ética, nada apresentou no programa de Governo, nem para tanto disporia de mandato popular. A “geringonça” parlamentar trata o Governo como um estranho e os eleitores como basbaques.

O pior de tudo é a Assembleia da República ir discutir e votar projectos de lei grosseiramente inconstitucionais, sem antes desencadear um processo de revisão extraordinária da Constituição, como cumpriria.

O Regimento, no artigo 120.º, proíbe iniciativas legislativas que “infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados”. E os regulamentos das Comissões cometem essa apreciação à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. É esta 1.ª Comissão que tem a competência de “dar parecer sobre a constitucionalidade de propostas de lei, projectos de lei ou outras iniciativas parlamentares, quando tal lhe seja solicitado”. A decisão compete ao Presidente, no despacho que tem sempre de dar; em última análise, ao plenário, para que cabe recurso.

É claro que uma apreciação da constitucionalidade pela Assembleia da República não tem valor definitivo. Essa prerrogativa é do Tribunal Constitucional, único órgão de soberania que tem o poder de declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

Mas a Assembleia tem obrigação de prestar atenção ao assunto e mostrar respeito – ao menos, consideração – pela Constituição da República, em vez de fazer de conta que não a vê ou que é forasteira. O Parlamento não pode ser avestruz diante da Constituição. O problema deve ser seriamente enfrentado. E esperar-se-ia que a 1.ª Comissão e os seus membros soubessem estar à altura dos pergaminhos do seu nome – Comissão de Assuntos Constitucionais –, emitindo um parecer com elevação e seriedade, que merecesse consideração intelectual, e não o ditame de vulgar sectarismo partidário. Todos merecemos poder acreditar na idoneidade das instituições.

Os projectos de lei tratam dos termos e condições em que se poderia “antecipar ou abreviar a morte” de alguém, cometendo este poder a médicos e enfermeiros. Sintetizando, são projectos tendentes a conceder licença para matar. A brutalidade que fira os mais sensíveis não está nestas palavras, mas na realidade proposta: os projectos alteram, em correspondência com o seu pensamento, os artigos do Código Penal relativos ao “homicídio a pedido da vítima” e ao “incitamento ou ajuda ao suicídio”. Isto é, o que hoje não é permitido passaria a ter licença.

Estas ideias de lei confrontam, de modo frontal e radical, princípios estruturantes do sistema jurídico, da ordem social e da ética colectiva. Na raiz de tudo, principalmente o direito à vida. Já ouvi acusar de “autoritarismo” os argumentos deste tipo. A crítica é obviamente um disparate: quando identificamos os pilares, as fundações de um determinado sistema, emergem afirmações implícitas de autoridade. Porquê? Porque são traves fundadoras de onde tudo irradia e contra as quais, nada. São questões de princípio, nada havendo a montante de si e sendo elas fonte e referência do resto. Porquê a liberdade de pensamento? Porque sim. Porquê a liberdade de expressão? Porque sim. Porquê a liberdade de reunião, de associação e de manifestação? Porque sim. Será a afirmação das liberdades fundamentais expressão de autoritarismo? Ridículo! Porquê, então, o direito à vida? Porque sim, porque a pessoa humana é a realidade fundamental e contra ela, contra a sua integridade, contra a vida, nada.

A Constituição escolheu uma expressão particularmente vigorosa e feliz para exprimir o seu pensamento de maneira inequívoca: “A vida humana é inviolável.” Assim mesmo: “A vida humana é inviolável.” É um monumento extraordinário, que faz da Constituição Portuguesa a mais avançada do mundo, no que toca a este direito humano perante o Estado. Sem margem para dúvida. Não há outra igual.

Nos projectos constitucionais apresentados em Julho de 1975, aquele texto vem do Partido Comunista Português, o seu melhor contributo para a Constituição. Foi logo adoptado por todos, porque todos viram que era o melhor. E viram bem. Dizia o projecto do CDS: “Constituem direitos e liberdades individuais do cidadão português (...) o direito à vida e à integridade física.” O do MDP/CDE: “[O direito à existência e ao desenvolvimento integral da personalidade] comporta a tutela da vida e da integridade físico-psíquica.” O do PS: “É garantido o direito à vida e à integridade física.” E o do PPD: “O direito à vida e integridade pessoal é inviolável.”

A formulação do PCP batia de longe todas as outras, porque não seguia a fria tecnicidade do “direito à vida”, que pode ser posto a “dizer” o contrário do que a gente lê. Afirmava assertivamente uma expressão tão clara que não consente dúvidas, nem necessita de intérpretes: “A vida humana é inviolável.” Formidável!

Toda a Assembleia Constituinte partilhou esta visão luminosa. O 26 de Agosto de 1975 é um dia histórico: os deputados constituintes aprovaram, por unanimidade, o preceito que viria a ser o artigo 24.º, n.º 1 da Constituição. Nem um voto contra, nem uma abstenção. Notável! Todos, em liberdade de consciência, votaram a favor da forte e solene proclamação.

Nessa altura não “votavam” ausentes, senão 250 votos a favor. Com o rigor da verdade, foi assim: o deputado da ADIM (Macau) esteve presente, votou a favor; estavam os 16 deputados do CDS, votaram 16 a favor; estavam quatro do MDP/CDE, os quatro votaram a favor; 18 deputados comunistas, 18 votos PCP a favor; 58 deputados do PPD, 58 a favor; 96 socialistas, 96 votos a favor pelo PS. Sem propostas de alteração, sem mais intervenções, tudo aprovado por unanimidade, com declarações de voto de PSD, CDS e PS. Presentes 193 constituintes, foram unânimes 193 votos a favor: “A vida humana é inviolável.” Um dia histórico. Grande é a responsabilidade da Assembleia da República que se senta na mesma sala.

Já li conjecturas em sentido diverso, invocando o aborto como precedente. Independentemente do que aqui se discuta, não são casos paralelos. Não há forma de aplicar a pessoas adultas a ginástica hermenêutica desenvolvida quanto a nascituros. Ninguém pode sustentar que, quando a Constituição estatui “a vida humana é inviolável”, está a querer dizer que “a vida humana é violável”. Absurdo! As regras são bem conhecidas: o intérprete não pode considerar “o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal” e deve presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

O comando constitucional protege dois interditos de civilização, que não são coisa pouca. Um: é proibido matar. Dois: os médicos não matam os seus doentes. São questões axiais de ordem pública, que estão sob protecção da nossa lei fundamental. É claro que é preciso parar.

Os projectos visam provocar uma ruptura ética no edifício, abrindo consequências imprevisíveis. Antes de mais, têm que afrontar a decisão histórica de 26 de Agosto de 1975 e rever a Constituição, rompendo e escangalhando aquela unanimidade fundadora e tornando violável o inviolável. Sem isso, constitucionalmente, não é possível.

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