A China comuno-capitalista está a começar a dominar o mundo do vinho

Não é uma premonição, é uma certeza: a China está prestes a dominar o mundo do vinho. No futuro, os nossos filhos também vão beber vinho chinês e não será necessariamente vinho barato.

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Tom Westbrock/Reuters

Pela primeira vez em 25 anos, o Concurso Mundial de Bruxelas, uma das maiores e mais importantes competições de vinhos do mundo, foi realizado na China, no distrito de Haidian, em Pequim, num resort de luxo construído para os Jogos Olímpicos de 2008 e que logo a seguir fechou por ser grande de mais — como é tudo naquele país. Reabriu agora para receber a multitudinária comitiva do concurso. Nos próximos dias, volta a fechar, até o Estado chinês necessitar dele novamente.

Em geral, os chineses, tirando os empresários que têm vindo a comprar as nossas empresas públicas, sabem muito pouco ou nada sobre nós. Mas nós ainda sabemos menos sobre eles e a sua milenar e riquíssima cultura. Entender a China e os chineses requer viver lá durante muito tempo — e ainda assim não será suficiente.

De uma estadia curta numa cidade gigantesca como Pequim, onde vivem cerca de 18 milhões de pessoas, na maior parte dos dias sob um manto de poluição que pouco deixa ver, o que sobra são meras impressões. Além do meu espanto perante o gigantismo da Grande Muralha, da imponência e beleza da Cidade Proibida ou da majestosa serenidade do Palácio de Verão; além da minha admiração com os modos educados e a cultura das novas gerações de chineses ou com a sensação de segurança que se vive nos lugares públicos a qualquer hora do dia, o que mais me impressionou foram os rostos de muitos chineses em visita turística aos grandes ícones da pátria. O turismo interno é um dos mais fascinantes fenómenos da China actual. Em 2017, cada chinês fez, em média, 3,7 viagens dentro do país. Ao todo, foram cinco mil milhões de deslocações turísticas internas que geraram uma receita de 587 mil milhões de euros.

Muitos dos idosos com quem me cruzei nestes dias em alguns monumentos de Pequim tinham cara de ser do interior chinês. Como espaço físico e psicológico, o “interior” é mais ou menos igual em todo o mundo. É uma espécie de Macondo, de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquéz. Uma “ilha”, mesmo que rodeada de terra firme. Para lá dessa “ilha”, fica o mundo desconhecido.

Nem os traços étnicos chegam para apagar essa surpreendente similitude de semblantes e de modos de agir das gentes do interior. Somos todos mais iguais do que imaginamos. Quem é ou viveu no interior imagina o que escondem aqueles rostos e aquelas roupas velhas que foram guardadas para os momentos especiais. Escondem uma forma particular de encarar a vida e o destino. Um viver rotineiro e conformado. Uma mundividência limitada ao lugar habitado e aos ciclos da natureza. E muito trabalho e fome, até.

Nos rostos dos idosos do interior chinês vi os rostos marcados dos idosos do velho Portugal que era o meu Portugal. Homens com fatos maiores do que o corpo e com camisolas de gola alta apesar do calor, mulheres com roupas extraordinariamente parecidas às que usavam as nossas mães há 50 anos, gente sempre a sorrir e com cara de pasmo perante o novo e a grandiosidade de tudo, como crianças em viagem inaugural. A imagem de dois idosos em passeio pelos jardins do Palácio de Verão, com o mais novo de mão nas costas do mais velho, numa emocionante comunhão de dois familiares ou de dois meros amigos, podia ter sido retirada de uma qualquer excursão de transmontanos a Lisboa ou ao Porto, para verem os palácios ou o mar.

O “comunismo” chinês dos dois sistemas (uso as aspas porque não é possível chamar comunismo a um modelo que assenta em princípios do mais puro capitalismo) tem permitido aos pobres e oprimidos gozar os prazeres criados pelo “capital” e frequentar os mesmos lugares públicos que frequentam os ricos e os turistas. Imagino que a China ainda esconda mais do que mostre e que a verdadeira realidade seja bem menos azul do que aparenta, mas o que vemos não é um povo com medo, nem muito menos um país policial. É um país ainda desigual, mas com um povo espantado com as mudanças do seu próprio país e ávido de alargar os seus horizontes para além da China “pequena”, faminta e oprimida saída da Revolução Cultural de Mao Tsé Tung. Um país fascinado com a cultura ocidental mas que continua a preferir o chá e o Baijiu (o mais famoso destilado da China, que pode ser feito de sorgo, arroz, trigo ou cevada) ao vinho.

Como em tudo na China, também no vinho se deve colocar a questão em perspectiva. No ranking mundial do consumo per capita de vinho, dominado pelos portugueses, os chineses estão apenas no 36.º lugar, com 1,34 litros por habitante. Parece pouco, comparado com os 54 litros que cada português bebe anualmente. Mas nós somos 10 milhões e os chineses são 1400 milhões. Tudo somado, o pouco que cada chinês bebe dá muito vinho.

É por isso que os produtores de todo o mundo continuam a depositar os seus sonhos no gigantesco mercado chinês. Em 2020, a China deverá tornar-se no segundo mercado de vinho mais valioso do mundo (logo a seguir aos Estados Unidos), com um volume de negócios da ordem dos 21,7 biliões de dólares. Bordéus, por exemplo, já depende da China. No entanto, talvez seja também avisado começarem a olhar para a China como um possível pesadelo futuro. A China possui a segunda maior área de vinha do mundo e já é o quinto maior produtor de vinho. Nenhum outro país tem crescido tanto e tão rápido. Agora ainda é um grande país importador, mas consome cada vez mais vinho nacional e dentro de poucos anos vai estar também a disputar o mercado da exportação. Antecipando-se à mudança, as grandes companhias de vinho de todo o mundo começam também a produzir vinho na China.

Não é uma premonição, é uma certeza: a China está prestes a dominar o mundo do vinho. No futuro, os nossos filhos também vão beber vinho chinês e não será necessariamente vinho barato. O grupo de luxo Louis Vuitton- Moët Hennessy já produz vinho na província chinesa de Yuannan, perto do Tibete, onde o clima é mais favorável. No ano passado lançou o seu primeiro tinto, o Ao Yun, de 2013, um lote de Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc. Sabe a quanto o vende na Europa e nos Estados Unidos? A 250 euros. E nem sequer é o vinho mais caro da China. Acredite, que é verdade.

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