Terry Gilliam, recebido em apoteose, agradeceu a Paulo Branco a publicidade extra a O Homem Que Matou Dom Quixote

Depois de uma batalha com o produtor português, o filme "maldito" do realizador encerra, este sábado, o 71.º Festival de Cannes, onde foi recebido com muitos aplausos mas algum distanciamento da crítica.

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Terry Gilliam, Adam Driver, Jonathan Pryce, Joana Ribeiro, Rossy de Palma, Jordi Molla, Olga Kurylenko, Stellan Skarsgård, O Homem que Matou Dom Quixote, Festival de Cannes 2018
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Treze pessoas sentaram-se à mesa das conferências de imprensa do Festival de Cannes para a apresentação de O Homem Que Matou Dom Quixote. Poder-se-ia imaginar aí um gesto calculado de humor de Terry “Monty Python” Gilliam – e ele próprio diria a seguir que demorou três semanas a preparar esta sessão com os seus actores –, mas terá sido apenas uma coincidência “bíblica”, o quadro que de algum modo ajudou a concluir a saga deste projecto antigo do realizador. Mesmo sabendo-se que a história vai prosseguir... nos tribunais.

A verdade é que O Homem Que Matou Dom Quixote finalmente existe, e chegou já ao grande ecrã. O filme com que Terry Gilliam começou a sonhar no início da década de 90, e que teve uma primeira tentativa de rodagem, que acabaria abortada, em 2000, tem a sua estreia mundial, este sábado, na sessão de encerramento do 71.º Festival de Cannes, acompanhado por um suplemento de publicidade inesperado, decorrente da polémica subsequente ao processo intentado pelo realizador contra o produtor português Paulo Branco.

“Obrigado, Paulo, por teres desempenhado este papel com tanta intensidade”, agradeceu Gilliam, associando mesmo a figura do produtor português ao imaginário das personagens de Miguel de Cervantes – “estas personagens existem na realidade”, disse – a meio da conferência de imprensa realizada a anteceder a exibição do filme na última noite do festival.

A história mais recente da saga de O Homem Que Matou Dom Quixote também é conhecida. Depois de anunciado no Festival de Cannes de 2016 pela dupla Terry Gilliam-Paulo Branco como uma ambiciosa co-produção europeia, a rodagem do filme começaria na Primavera do ano a seguir, já quando o realizador tinha rompido com o produtor português e a Alfama Films. A espanhola Tornasol, a belga Entre Chien Et Loup, a francesa Kinology e agora a portuguesa Ukbar Filmes são os produtores que levam de facto o filme para o terreno, com as filmagens a decorrer em Portugal, nomeadamente no Convento de Cristo, em Tomar, e em Espanha. 

Terry Gilliam, entretanto, interpôs um processo em tribunal pedindo que este reconhecesse a não validade do contrato com Paulo Branco e reivindicando os direitos sobre O Homem Que Matou Dom Quixote. E a polémica agudizou-se quando a direcção de Cannes anunciou a selecção do filme para encerrar a presente edição do certame.

Contra a vontade do produtor português, a justiça acabaria por autorizar a projecção na Croisette e também a sua estreia comercial em França – mesmo se a questão definitiva dos direitos continua por resolver.

Primeira rodagem em 2000

Foi neste contexto que Terry Gilliam se apresentou sorridente e feliz na passadeira vermelha de Cannes, posando para as fotografias em poses vitoriosas, e aparentemente recuperado do problema de saúde que o levou ao hospital há duas semanas.

Elogiando genericamente o filme, os jornalistas quiseram conhecer o sentimento do cineasta, terminada a saga de duas décadas para a concretização do projecto. “Os meus filmes não são loucos, são antes realistas, falam do mundo real”, respondeu Gilliam, admitindo ter feito alterações no guião, desde que, em 2000, problemas inesperados – como a doença do actor Jean Rochefort (entretanto desaparecido), que fazia o Dom Quixote, além de inundações e do ruído de aviões da NATO no plateau em Navarra, Espanha – obrigaram à interrupção da rodagem.

Agora ladeado pelos actores Jonathan Pryce (o novo Dom Quixote, que já trabalhara com Gilliam em Brazil, o Outro Lado do Sonho, 1985, e A Fantástica Aventura do Dragão, 1988), Adam Driver (que substituiu Johnny Depp), Jordi Molla, Olga Kurylenko, Rossy De Palma e a portuguesa Joana Ribeiro, o realizador evocou alguns dos momentos difíceis por que passou a rodagem. E citou especificamente a experiência vivida no Convento de Tomar, quando “a natureza, com o seu sentido de humor”, enviou a chuva para um plateau com centenas de actores e figurantes, e efeitos especiais pirotécnicos. “Esse foi o único momento em que vi o Terry com menos adrenalina do que o costume”, recordou Jordi Molla.

Lenda ou autobiografia?

Todas estas histórias em volta deste que chegou a ser designado como “o filme maldito” de Gilliam acabaram por condicionar, de algum modo, a recepção de O Homem Que Matou Dom Quixote em Cannes. E se as intervenções na conferência de imprensa tenderam a elogiar e a aplaudir o resultado, já a crítica internacional desenvolveu leituras diversas. Luis Martínez, do El Mundo – na véspera da estreia, Terry Gilliam deu uma entrevista colectiva à imprensa espanhola –, viu em O Homem Que Matou Dom Quixote a pegada da “autobiografia”: “Gilliam não só cura a obsessão de rodar esta fita como explica as razões do seu empenho pertinaz nela – ele é simultaneamente o Quixote encantado e o Sancho desencantado.” Thomas Sotinel, do Le Monde, faz uma associação entre o visionamento do filme e a experiência de alguém que “entra num quarto de hospital onde se encontra um amigo que acaba de ser objecto de uma cirurgia estética”. “A história deste filme tornou-se uma das grandes lendas do cinema”, acrescenta.

Já Peter Bradshaw, do Guardian, compara com obras anteriores do realizador, como Brazil ou 12 Macacos, “visualmente bem mais ambiciosos, e mesmo revolucionários no estilo”. Mas destaca no novo trabalho “uma doce jovialidade” e “uma alegre natureza”, além de elogiar a actuação de Jonathan Pryce.

Menos entusiasta se mostrou Luc Chessel, do Libération, que viu Gilliam a passar “ao lado” do herói de Cervantes. “O Homem Que Matou Dom Quixote faz jus ao seu título, e é simultaneamente o filme certo para o encerramento de um festival, também ele, crepuscular: tem qualquer coisa de terminal.”

A terminar a conferência de imprensa, perguntaram a Terry Gilliam para quando um novo filme. “Não faço a mínima ideia. Não tenho nada em mente. Fiquei tão triste por ter trabalhado tanto, e por ver-me ficar sem nada, sem futuro, se não com a morte à minha frente”, respondeu o cineasta, que, à noite, à entrada para a sessão de encerramento, sobre a passadeira vermelha, foi recebido em apoteose no Palácio do Festival.

Notícia corrigida: o processo em tribunal foi primeiramente interposto por Terry Gilliam e não por Paulo Branco.

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