Ambra Senatore trouxe o seu humor e os seus corpos em fuga à Companhia Nacional de Bailado

Até 27 de Maio, a coreógrafa italiana apresenta um programa duplo no Teatro Camões, em Lisboa: a remontagem de Passo e uma nova criação para a Companhia Nacional de Bailado, Toccata e Fuga.

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BRUNO SIMÃO

No chão do palco, uma diagonal desenhada a luz. No sentido dessa diagonal que rasga a escuridão, havemos de ver corpos a atravessarem a cena, frequentemente em passo de corrida, rumo a algum local que não é claro. Toccata e Fuga, criação de Ambra Senatore para a Companhia Nacional de Bailado (CNB), ecoa de forma deliberada imagens dessoutra peça da italiana, Passo (2010), também apresentada no programa desenhado para o Teatro Camões, em Lisboa, até 27 de Maio.

Paulo Ribeiro, o director artístico da CNB, quis que essa peça que afirmou a coreógrafa italiana no contexto europeu fosse remontada pela companhia portuguesa. Ao aceitar dar uma nova vida a Passo e, paralelamente, criar de raiz um novo espectáculo em Lisboa, Ambra Senatore predispôs-se também a alterar de forma considerável aquele que é o seu habitual método de trabalho: em vez de passar um ano inteiro a desenvolver uma obra com a sua companhia, concentrou todo o processo criativo de Toccata e Fuga em seis semanas.

Daí o título, ri-se: “Parto sempre de coisas concretas para as minhas criações, e algo que tinha de muito real nesta situação era a pressão do tempo. Mas isso é muito interessante para mim, porque são apenas formas diferentes de trabalhar”, diz ao PÚBLICO. Pouco habitual é também partir do desafio de uma encomenda que a fez esgravatar em busca de uma temática. “Normalmente começo a criação quando tenho um sentimento ou uma necessidade forte de criar; depois leva-me alguns anos até que um pequeno desejo se torne num grande desejo e consiga financiamento e bailarinos para fazer a peça.” Ultrapassada essa fase, Senatore achou que tinha de se questionar sobre o que tinha de real como matéria possível para uma nova obra. E as duas coordenadas fundamentais que encontrou foram estas: a escassez de tempo e a parelha que faria obrigatoriamente com Passo.

A Passo foi buscar a diagonal de luz e a posição em que uma das bailarinas se deixa ficar no chão. “A mesma posição de um fantoche que temos em Passo e que é construído durante a peça.” São elementos que se destinam a criar uma ligação com a outra obra a que o público poderá assistir. Ao prazo apertado para o processo criativo, Senatore foi buscar uma ideia de urgência que coloca os corpos em fuga de algo que não é claro, rumo a um lugar que é também uma incógnita. Mas este grupo em fuga parece, por vezes, aludir de forma subtil à crise dos refugiados. E a coreógrafa não nega que se sente “hoje muito tocada pelo problema de as pessoas se verem obrigadas a fugir dos seus países”.

Dança e cinema

Se há uma matéria sempre concreta a dar forma às criações de Ambra Senatore, essa característica da sua obra estende-se também à integração do dia-a-dia em cada uma das criações da italiana. “Habitualmente”, reconhece, “as minhas peças são geradas pela transposição dos gestos do quotidiano para a linguagem da dança”. Também aos bailarinos da CNB foi pedido que trouxessem para o estúdio a sua observação dos pequenos gestos de todos os dias, que depois Ambra distende, engrandece, desacelera ou apressa, criando uma partitura do quotidiano que é usada como paleta para a construção dos espectáculos. Foi isso que aconteceu, após duas semanas iniciais em que o grupo se dedicou sobretudo a “fazer jogos, como crianças”.

Virá talvez daí uma certa leveza que contagia Toccata e Fuga. Há, aqui e ali, um tom estival, uma energia juvenil, e até mesmo um humor (também frequente em Senatore), responsáveis por imprimirem na peça um lado despreocupado que se faz acompanhar por uma pulsão narrativa. O humor, reconhece, é algo de muito imediato em si. “É também a forma como vivo a minha vida”, diz. “Quando as coisas não correm muito bem, mantenho sempre uma distância que me faz olhar para o lado mais cómico de tudo. Claro que isso provavelmente só acontece porque tenho muita sorte – tenho uma família maravilhosa, sou saudável, não sou rica mas não me falta nada daquilo de que preciso, vivo num país sem guerra. É um privilégio poder ser irónica em relação a qualquer assunto.”

Ambra Senatore gosta também de aplicar o humor ao lado menos iluminado do ser humano, contrariando, ao mesmo tempo, “a seriedade em excesso que existe na dança contemporânea”. Tal tendência para o humor conjugada com a exploração do quotidiano evoca com insistência o cinema de Jacques Tati. É uma referência com a qual tem sido confrontada desde que começou a coreografar para colectivos, mas sempre fez por evitar os filmes de Tati até que, há um ano e meio, num workshop sobre dança e cinema, uma investigadora comparou algumas cenas do cineasta francês com as suas coreografias. Percebeu que se sentia em casa. Mas continua sem querer expor-se a Tati. “Agora tenho medo”, ri-se.

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