Aulas de levitação para iniciados

João Tordo é um contador de histórias que parecem surgir-lhe naturalmente — por mais inquietantes que sejam.

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O mito de Ícaro povoa esta tragédia que tem as suas coordenadas entre o vetusto Liceu Camões, em Lisboa, e o Japão MIGUEL MANSO

Numa das salas do vetusto Liceu Camões, em Lisboa, num dia incaracterístico de Inverno, um obscuro professor enforca-se. As causas deste drama ficam por esclarecer, mas o acontecimento desencadeia sucessivas reacções que farão parte do mais recente romance de João Tordo, Ensina-me a Voar sobre os Telhados.

O narrador, que iniciou a sua carreira como professor-adjunto, ascendeu a bibliotecário e, mais tarde, se tornou coordenador pedagógico da escola, tem já um longo historial de sofrimento: o único filho nasceu surdo, a mulher deixou-o, ele tornou-se alcoólico e, no momento em que a história começa, vive a rotina própria de um burocrata despido de emoções, entediado e triste. Chocado com o suicídio do professor, decide organizar reuniões numa arrecadação onde, a pouco e pouco se vão juntando personagens diversas, cada uma com o seu trauma, afundadas em desastres e pecadilhos, presas de angústias e incapazes desse anseio de transcendência, desse “levantar voo” que funciona como leitmotiv do romance.

Sem obedecer a uma cronologia específica, o autor conta as histórias difusas dos que se vão juntando nesse grupo de auto-ajuda informal. A volátil atmosfera e os humores reinantes são transformados pela chegada de mais um elemento, Henrique Tsukuda, uma figura estranha e perturbadora. Filho de pai japonês e mãe portuguesa, carrega consigo muitos segredos e uma história assombrosa. Na sua família, a relação entre pais e filhos é cruel e conflituosa e o seu comportamento reflete os traumas e os abusos de gerações imersas na loucura.

Tsukuda funciona como Némesis do narrador, alguém que simultaneamente o fascina e repugna, mas que ele nunca compreende ou alcança. É um rival poderoso — e íntimo —, com quem trava uma batalha psicológica, surda e impiedosa, que não consegue vencer, e que o força a questionar os seus próprios actos. Tsukuda é o seu “duplo”, um “replicante” — uma das cenas, à noite, sob uma chuva torrencial, parece ter saído de Blade Runner (o filme original, de Ridley Scott) —, a sua eterna sombra, a sua punição. Recorde-se que Némesis, em astrologia, é uma estrela a que chamam “a gémea maligna do sol”.

Neste romance, as mulheres desempenham um papel secundário, são sombrias, desesperadas e remotas, com excepção da radiosa figura de Ludmila, o contraponto — por ser tão enraizada, prática e sensata — dos desvarios dos voos tão ansiosamente desejados.

Tal como em outras obras, João Tordo introduz aqui elementos que são próprios da chamada literatura de horror — ambientes sombrios, chuva, noite, figuras estranhas vestidas de negro, sons irreconhecíveis, loucura, etc. —, embora rompa com essa tradição ao aproximar-se mais de um certo “realismo mágico” cosmopolita, com detalhes que vai buscar ao género fantástico. Esta faceta é sublinhada pelo tema principal subjacente a toda a acção, esse desejo ímpio de voar reservado aos deuses e aos santos e que, nos meros mortais, é apenas matéria de sonhos e pesadelos. A levitação praticada pelos místicos — Teresa de Ávila, Fu Huang, Gerardo Mjella, citados num texto da suposta autoria de Tsukuda, inserido aqui como um Manual de Instruções para Levitar — é um dos que povoam esta tragédia contemporânea, plena de referências às obras de Séneca, Platão, Cervantes, Milton e aos mitos de Sísifo (o absurdo da existência e a busca de um sentido, num universo vazio de Deus, segundo Camus) e, principalmente, de Ícaro, o desgraçado filho de Dédalo, esse pai que constrói um labirinto (físico, existencial, emocional) do qual só poderão escapar voando. Será a desobediência de Ícaro, esse desejo irreprimível de chegar mais alto, de se aproximar dos deuses, que ditará a sua queda e a sua morte.

João Tordo é, essencialmente, um contador de histórias que parecem surgir-lhe naturalmente e que ganham forma quando estruturadas em torno de uma trama, cuidadosamente urdida no tempo e no espaço. O cenário pode ser uma ilha inóspita ao largo da costa do Japão ou um liceu da capital portuguesa; as personagens, tanto masculinas como femininas, oriundas de lugares diversos, estão ligadas pelo acaso; as memórias de tempos passados são introduzidas, uma e outra vez, como se o autor estivesse a testar a atenção de quem lê. No entanto, a narrativa principal está contida num espaço de tempo bem definido – pouco mais de um ano, a começar a 19 de Janeiro de 1987 – e num lugar, Lisboa, perfeitamente reconhecível.   

“O irreal é a única arma com a qual podemos esmagar a realidade para que esta seja, subsequentemente, reconstruída”, escreveu Salman Rushdie num dos ensaios contidos em Pátrias Imaginárias. Para escritores como Rushdie e Toni Morrison, o que não é “real”, tudo o que é estranho, incompreensível, inexplicável, é gerador de mudança, uma espécie de motor que põe em marcha a imaginação, aliada às inquietações contemporâneas e às eternas dúvidas existenciais. João Tordo parece disposto a seguir esse caminho, num romance poderoso, inquietante e profundamente lírico.

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