Governo fez alteração à lei que facilita OPA chinesa na EDP

A mudança introduzida com o Programa Capitalizar, em Junho passado, vai facilitar a OPA da China Three Gorges sobre a EDP, lançada há uma semana. O agora ministro Siza Vieira esteve no arranque do processo.

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António Costa já disse que não se opõe à OPA da China à EDP NAOHIKO HATTA/REUTERS

A mudança que o Governo fez ao Código dos Valores Mobiliários (CVM) no Verão passado vai facilitar a Oferta Pública de Aquisição (OPA) da China Three Gorges (CTG) sobre a EDP. A alteração legislativa feita no âmbito do Programa Capitalizar, que tinha como um dos responsáveis o actual ministro-adjunto Pedro Siza Vieira, terá causado mal estar no Ministério das Finanças e na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).

Em causa está uma alteração legislativa introduzida num decreto-lei onde se aprovavam medidas de financiamento e de capitalização das empresas e em cujo preâmbulo se assumia logo ser necessário alterar o CVM para favorecer “a captação de investimento directo estrangeiro, designadamente, entidades infra-estaduais estrangeiras com as suas próprias estratégias de internacionalização e de investimento”.

Este diploma com as medidas propostas pela Estrutura de Missão para a Capitalização das Empresas (em cuja comissão executiva estavam, para além de Pedro Siza Vieira, Esmeralda Dourado, João Nuno Mendes e José António Barros), que funcionava na dependência do primeiro-ministro, alterou o CVM num artigo relacionado com a imputação conjunta de direitos de voto de accionistas de empresas que têm relações entre si.

Com a nuance introduzida na lei, os accionistas chineses da EDP acabam por ser beneficiados. Sem esta modificação, a CTG que tem 23,27%, e a CNIC, que tem 4,98% – ambas detidas pelo Estado chinês – teriam os seus direitos de voto contabilizados conjuntamente e limitados a 25% devido à cláusula estatutária da EDP que impede um accionista de votar com mais de 25% do capital.

Com a mudança, os benefícios são múltiplos. A CTG pode votar com os seus 23,27% e a CNIC com 4,98%, ou seja, 28,25% no total. Por outro lado, se viessem a ultrapassar 33% do capital da EDP, estes dois accionistas detidos pelo Estado chinês teriam de lançar uma OPA. Com a modificação da lei, ficam libertos dessa obrigação, o mesmo acontecendo com os deveres de comunicar ao mercado sempre que ultrapassem determinados patamares de posição accionista.

A primeira consequência prática desta alteração à lei, e desse entendimento de que não haverá lugar à imputação conjunta dos votos, aconteceu esta terça-feira à noite, com a CTG Europe (a sociedade através da qual a CTG vai lançar a OPA) a ter de fazer uma alteração ao anúncio preliminar da oferta onde deixou claro que, “de acordo com o entendimento da CMVM”, não lhe são imputáveis, nem à casa-mãe CTG Corporation, os votos da CNIC Corporation.

Mas a alteração poderá ter ainda mais efeitos para o futuro quando chegar a altura de votar em assembleia-geral da EDP a desblindagem de estatutos, que é uma condição de sucesso da OPA (ainda que os chineses tenham sublinhado que, mesmo que a desblindagem de estatutos seja aprovada, só será válida se a OPA for bem sucedida, caso contrário, o actual limite de votos mantém-se).

Depois da entrada em vigor desta alteração legislativa, quer a CTG, quer a CNIC reforçaram as suas posições na EDP. A primeira passou de 21,35% para 23,27% e a segunda, de 3,02%, para 4,98%. Ou seja, antes da modificação do CVM o Estado chinês tinha menos de 25% da EDP, depois da modificação, passou a ter 28,25% e é com esta percentagem de votos que vai poder votar a desblindagem dos estatutos da EDP. A estes votos poderão somar-se, por exemplo, os 2,44% detidos pelo fundo de pensões do BCP (que foi o intermediário financeiro escolhido pela CTG para a operação), cujo maior accionista é a chinesa Fosun, com 27%.

Contornos polémicos

A alteração legislativa feita no ano passado causou mal estar nas Finanças e é uma versão mitigada daquela que estava prevista inicialmente pelos seus autores. Logo na altura a aprovação da medida foi polémica, com o PSD a requerer mesmo a apreciação parlamentar do decreto-lei (o que ainda não teve efeitos práticos) e o Jornal de Negócios a noticiar que a CMVM não tinha sido consultada. Contudo, as informações recolhidas pelo PÚBLICO são contraditórias, com fontes a dizerem que a CMVM não foi consultada no processo e outras a dizerem que o supervisor da bolsa estava a par das alterações propostas e que, juntamente com as Finanças, conseguiu impedir as intenções iniciais.

O PÚBLICO contactou o gabinete do primeiro-ministro, o Ministério das Finanças e o ministro Siza Vieira e a todos perguntou qual foi o papel que desempenharam na alteração legislativa e se esta estava relacionada com a situação accionista da EDP. A única resposta veio do gabinete de Siza Vieira:

"Em relação à alteração do CVM, introduzida no ano passado, o Sr. Ministro-Adjunto era vogal da EMCM, estrutura essa que propôs, nomeadamente, a constituição das SIMFE [veículos de investimento] e dos certificados de curto prazo. Em Junho de 2017, o Sr. Ministro não era membro do Governo pelo que não teve participação no circuito legislativo. Assim, a questão deve ser colocada ao Ministério das Finanças".

O PÚBLICO sabe que estiveram envolvidos no processo de alteração o anterior secretário de Estado da Internacionalização, Jorge Costa Oliveira (que se demitiu na sequência do caso das viagens pagas pela Galp), e o actual ministro-adjunto. À data da realização do diploma do Programa Capitalizar, Pedro Siza Vieira ainda era sócio do escritório de advogados Linklaters, que está a assessorar a CTG na OPA. O ministro veio dizer esta semana que não irá intervir em matérias relacionadas com o sector eléctrico enquanto a operação se encontrar em curso.

As tentativas de tornar mais explícito no texto da lei os benefícios atribuídos por força da alteração ao CVM não cessaram. Nos últimos meses houve uma investida da diplomacia económica para que houvesse uma nova alteração, mas esta chumbou nas Finanças.

A necessidade da clarificação que entretanto foi feita pela CTG surge porque, como admitiram juristas contactados pelo PÚBLICO antes do comunicado divulgado na terça-feira à noite pela companhia chinesa, mesmo com a alteração, a lei não é suficientemente clara. Em caso de divergência isto levaria, em última análise, a que a decisão sobre a possibilidade de a CTG e a CNIC votarem isoladamente coubesse ao presidente da mesa da AG da EDP, António Vitorino.

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