A ideologia gastronómica

Um fenómeno a que alguém já chamou “gastromania” iniciou há já alguns anos uma invasão dos programas de televisão e de rádio, dos jornais e das revistas: trata-se da obsessão pela comida, pelas dietas, pela gastronomia. E pela estetização disso tudo. A cozinha é hoje aquilo que ainda dá existência à wagneriana “obra de arte total”. Foi certamente por isso que a Bienal de Veneza já acolheu uma manifestação enogastronómica internacional. A bienalização gastronómica está para breve. No palco desta cozinha onde se faz a síntese de todas as artes, já não está um cozinheiro ou uma cozinheira, gente de casa que tinha um conhecimento empírico dos alimentos, condimentos, tachos e panelas, adquirido por pragmática necessidade e por determinação de códigos sociais e culturais, mas um chef, um génio sempre nomeado na língua de Rabelais. Quando é solicitado a apresentar-se à boca de cena (e isso acontece  muitas vezes, para alimentar a obesidade dos media e satisfazer a voracidade do público), fala como um intelectual e mostra as suas competências na alimentação do espírito. A palavra chef está no centro da novilíngua da gastromania: a verdadeira grande bouffe é da ordem da linguagem. A comida é como o sexo (eis uma relação outrora imediata, mas agora obliterada): é quando mais se fala nela que ela está em falta. Devemos pois presumir que a saturação culinária que os media praticam e que fez proliferar os cooking shows para foodies de todos os géneros e exigências (vai nesta frase um cheirinho da novilíngua da gastromania) é como o prazer sexual para os libertinos do século XVIII: tudo se reduz a uma dimensão mental e retórica.

A partir da observação deste fenómeno internacional, é possível formular um princípio de ciência certa: quanto mais avança a gastronomia, mais recua a cozinha. Por isso é que a obsessão pela comida não fica pela ópera do chef, pela restauração estrelada pela Michelin, e vai em busca do regional e do caseiro. Aqui, a globalização é sempre má e o local é sempre bom. Com os seus mitos da tradição, do enraizamento e do povo, a gastronomia é a única arte fascista que os democratas toleram, em nome do revival mitológico das avós (mais do que dos avôs, que nunca entraram numa cozinha). Praticada nos grandes palcos, ela é, como ficou dito, a actualização tardia e exasperada da obra de arte total; praticada nos sítios de ruralidade em ambiente urbano (no campo, a cultura da ruralidade já foi expulsa há muito tempo), ela é um fenómeno antropológico total. A esta última acorrem os críticos e divulgadores, dados à viagem e à descoberta. Os grandes restaurantes onde se pratica a gastronomia erudita não têm exterior: tudo se explica a partir do interior, onde paira a figura tutelar do chef alquimista; pelo contrário, os restaurantes de cozinha regional têm sempre um imenso exterior, merecem demoradas descrições históricas, geográficas e etnográficas. A gastromania dos media é de uma grande exigência cultural e, evidentemente, nenhuma televisão ou nenhum jornal abancam numa tasca em São Miguel de Seide sem revisitar longamente Camilo Castelo Branco, que não chegou a conhecer o food design e é pena. Paradoxalmente, quanto mais penetram na região dos arquétipos gastronómicos, mais os mediadores da obsessão gastronómica se sentem próximos da elaboração requintada e do luxo da comida lenta, onde se sedimentam estratos e estratos de cultura. Esta gente, que é ainda capaz de acreditar no progresso das artes e da civilização, em matéria de gastronomia difunde e elogia o que há de mais reaccionário.
A gastromania é afinal uma ideologia.

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