Já incendiaram a casa a esta família que distribui abraços contra a homofobia

Esta quinta-feira, Dia Internacional Contra a Homofobia, a Bifobia e a Transfobia, a partir das 16h, este casal e outras pessoas vão oferecer abraços em Coimbra, Porto, Lisboa e Funchal.

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Rui tem 49 anos, Marco tem 34 e os filhos têm 9 e 15 anos Manuel Roberto

Há cinco anos, a menos de duas semanas do casamento, a casa que Rui Cardoso partilhava com o companheiro Marco Ribeiro Henriques e os dois filhos deste, na Lousã, foi devorada pelas chamas. A investigação foi arquivada, mas ninguém lhes tira da cabeça que foram vítimas de um crime de ódio.

“Aquilo foi feito para que não nos casássemos”, afirma Marco. “Aquilo foi feito para que o que nos une se dilacerasse.”

Tem 34 anos. Está a fazer doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e é presidente da Assembleia-Geral do Observatório dos Direitos Humanos. Traz Rui, de 49 anos, Lucas, de 15, e Alícia, de nove, para que a história seja contada a quatro vozes, mas domina a conversa.

Portugal está entre os países mais respeitadores dos direitos dos homossexuais. Em 2004, consagrou a proibição de discriminação com base na orientação sexual. Em 2010, reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 2015, aprovou a adopção e a co-adopção por casais de gays e lésbicas. Só que famílias como esta continuam a sentir-se “uma atracção”.

Esta quinta-feira, Dia Internacional Contra a Homofobia, a Bifobia e a Transfobia, a partir das 16h00, este casal e outras pessoas vão oferecer abraços na Rua Ferreira Borges, em Coimbra. Haverá gente a fazer o mesmo na Rua de Santa Catarina, no Porto, no Largo Luís de Camões, em Lisboa, na Praça do Município, no Funchal, por iniciativa de diversos colectivos e associações LGBTI.

“Não basta mudar as leis; à micro escala, há muita coisa para fazer”, observa Marco. Um exemplo? Entram os quatro num museu, pedem os bilhetes a preço de família e o mais certo é ouvirem: “Onde está a mãe?” A desconfiança já os levou a retorquir: “É preciso trazer a certidão de casamento?”

“Crianças entendem tudo”

Conheceram-se há meia dúzia de anos no Atelier du Coiffeur, o cabeleireiro que Rui Cardoso montou em Coimbra. Por recomendação de amigos, Marco foi lá cortar o cabelo. Houve faísca. No segundo ou terceiro encontro, Rui revelou-lhe que se candidatara a uma adopção singular. “Ai, é? Olha, eu tenho dois filhos!”

As crianças eram pequenas. Marco separara-se havia menos de três anos e ficara com a guarda total. Às vezes, nem sabia para onde havia de se virar. Frequentava a licenciatura em Direito no Instituto Superior Bissaya Barreto, atendia telefones na PT, estava a sair do armário e tinha de educar duas crianças. “E educou muito bem”, garante Alícia, provocando uma gargalhada geral.

Nem Lucas, nem Alícia lhe levantaram problemas. “As crianças entendem tudo melhor do que os adultos porque são puras”, acredita Marco. “Basta estabelecer um grau de normalidade, explicar-lhes que as pessoas se relacionam de várias formas, que as famílias podem ter diversas configurações.”

Não chamam padrasto a Rui. Chamam-lhe pai Rui ou Rui simplesmente. E Lucas explica porquê: “Um pai é uma pessoa que cuida de nós, que nos dá o que é preciso. Ele cuida de nós e dá-nos tudo o que precisamos. Merece ser chamado pai.”

A este respeito, muito gostaria Alícia de dizer às crianças da sua idade: “Não devem gozar com os outros por terem dois pais ou duas mães. Isso é ofender. Toda a gente tem o seu direito…” Lucas também gostaria de dizer algo aos adolescentes da sua idade: “Ter dois pais não é o fim do mundo. É normal.”

Aquelas mensagens não partem do nada.  “Às vezes, gozam comigo”, encolhe-se Alícia. “Gozam comigo por ter mais um pai do que eles. Eu acho que isso é inveja!” Vale-lhe que “a professora é boazinha”. Tenta trabalhar a ideia de diversidade. A experiência de Lucas é bem mais bicuda: “Ouvi lá no colégio que, por ter dois pais, vou ser gay. É estúpido.” Mudou de escola, apesar de estar a passar para o 9.º ano. Para lá do seu comportamento, a directora lidava mal com o seu contexto familiar. “Ela disse-me que o meu filho era um escândalo para a sociedade de Coimbra. Foi quando percebi que tinha de o tirar de lá”, esclarece Marco. Não tem tido problemas na nova escola. 

“É um processo”

Ainda que quase sempre de forma subtil, a homofobia polvilha-lhes a vida. Viram familiares e amigos afastar-se quando anunciaram que iam juntar os trapinhos e dar o nó. No dia do casamento, Marco tinha o pai e duas das três irmãs. Rui não tinha pai, nem mãe, nem irmãos.

Alguns familiares foram reconquistados, pouco a pouco, como a mãe de Marco que agora, quando quer falar com os netos, mais depressa telefona ao genro. “Ainda há pouco, apresentou o Rui como meu companheiro. Para ela, é mais confortável. Se calhar, daqui a um tempo vai dizer marido. É um processo.”

No dia 14 de Maio de 2013, quando a casa ardeu, dominava-os uma sensação de desamparo quase total. “Não apareceu a mãe dos meus filhos. Não apareceu a minha mãe. Não apareceram os pais do Rui”, torna Marco. “Não tive ninguém a apoiar-me”, corrobora Rui. “E foi por me ir casar com um homem.”

Tinham andado a tirar fotografias para o álbum de casamento. Chegaram a casa por volta das 19h. Na rua, ninguém adivinharia. “Estava a entrar com o meu filho e ele comentou que cheirava a fumo. Era muito ténue. Na garagem, nada. Abrimos a porta, logo no vão das escadas, tudo queimado.”

De acordo com a Polícia Judiciária, fora chama directa. Alguém andara pela casa a pegar fogo em diversas divisões. “Foi complicado”, recorda Rui. “Estavam ali 40 anos da minha vida. E era uma vida que se estava a iniciar a quatro. De um momento para outro, nada.”

Viveram seis meses num quarto de uma residencial até regressarem a casa, que recuperaram com o dinheiro do seguro. O sentimento de insegurança tornou-se excessivo. Venderam a casa na Lousã e compraram um apartamento na cidade de Coimbra. Sentem hoje “um sossego imenso”, mas de vez em quando lá vem uma alfinetada homofóbica. E, para lutar contra isso, esta quinta-feira oferecem abraços.

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