De amigo da Rússia na Casa Branca a troll do Presidente em 423 dias

Em pouco mais de um ano, Rex Tillerson passou de chefe da diplomacia a funcionário despedido através do Twitter. Esta semana, vingou-se de Trump num discurso: "Se aceitarmos realidades alternativas, estaremos a renunciar à nossa liberdade."

Foto
Rex Tillerson foi despedido por Trump em Março Reuters/KEVIN LAMARQUE

Parecia uma daquelas sequências de comentários provocadores em reacção a uma qualquer declaração polémica nas redes sociais, só que tudo feito em carne e osso e perante uma audiência em directo. Dois meses depois de ter sido despedido, o ex-secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, aproveitou o seu primeiro discurso público para lançar um dos mais violentos ataques contra o Presidente Donald Trump, sem nunca dizer o seu nome.

Numa palestra perante os futuros oficiais formados no Instituto Militar da Virginia, quarta-feira, Tillerson gastou mais de metade do discurso a falar sobre as noções de verdade e integridade – e de como são essenciais para uma sociedade livre.

"Se os nossos líderes tentam esconder a verdade, ou se nós, como povo, passarmos a aceitar realidades alternativas que já não se baseiam em factos, então nós, como cidadãos americanos, estaremos a renunciar à nossa liberdade", disse o ex-secretário de Estado norte-americano, nomeado por Donald Trump em Fevereiro do ano passado e despedido há dois meses.

Apesar de Tillerson nunca ter dito o nome do Presidente norte-americano, não passou despercebido a ninguém que a mensagem era para ele. Segundo uma contagem do jornal Washington Post, actualizada no início do mês, Trump fez 3001 declarações falsas ou enganadoras desde que chegou à Casa Branca, e a sua conselheira Kellyanne Conway cunhou a expressão "factos alternativos" em Janeiro do ano passado, ao defender o então porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, quando este disse que a tomada de posse de Trump tinha registado "a maior audiência de sempre, ponto final, tanto em pessoa como em todo o mundo".

"Crise de ética e identidade"

O tema das mentiras, ou "factos alternativos", em relação a assuntos sem grande relevância – como o número de pessoas que assistiram a uma cerimónia – foi também focado por Rex Tillerson: "Quando nós, como povo livre, vacilamos perante a verdade mesmo nos assuntos mais triviais, também vacilamos perante a América."

Para além de fazer uma defesa acérrima dos aliados dos EUA, e de fazer questão de nomear os seus adversários, com a Rússia pelo meio, Tillerson afirmou que o país está sob a ameaça de uma "crise de ética e de identidade" que chega "aos líderes tanto no sector público como no sector privado".

E, se essa crise não for enfrentada, então "a democracia americana estará a entrar em declínio".

Ao todo, foram 22 minutos de indirectas ao Presidente que o escolheu para liderar a diplomacia dos EUA, numa cerimónia que mais parecia ser o funeral de uma relação que chegou a ser muito promissora.

O amigo russo

Quando Donald Trump convidou o então chefe da Exxon Mobil para ser os seus olhos e ouvidos à volta do mundo, no papel de secretário de Estado norte-americano, muitos críticos viram nessa escolha a confirmação de que a nova Casa Branca e a velha Rússia eram apenas nomes diferentes para a mesma entidade. Afinal, os anos de Rex Tillerson na gigante do petróleo tinham-no feito chegar tão perto de Vladimir Putin que o Presidente russo o agraciou com a Ordem da Amizade em 2013 "pela sua grande contribuição para a cooperação no sector da energia".

A nomeação de Tillerson para a liderança da diplomacia norte-americana foi confirmada no dia 1 de Fevereiro de 2016, e a votação no Senado apenas confirmou o manto de desconfiança que tinha caído sobre ele.

Para além de não ter recebido um único voto positivo entre os dez senadores do Partido Democrata na Comissão de Relações Internacionais, sendo aprovado apenas com os votos dos senadores do Partido Republicano, Rex Tillerson foi o secretário de Estado com mais votos contra na votação final no Senado em toda a História dos EUA.

O homem escolhido por Trump passou com 56 votos a favor e 43 contra. Para se encontrar uma outra votação anormalmente desequilibrada é preciso recuar até meados da década passada, quando Condoleeza Rice foi nomeada com 13 votos contra – e numa altura em que os norte-americanos começavam a pensar duas vezes sobre os méritos da invasão do Iraque tantas vezes sublinhados pela Administração de George W. Bush.

"Fucking moron"

No ambiente de profunda divisão no país em que Tillerson foi recebido na Casa Branca, esperava-se que ele e o seu Presidente criassem uma relação forte, que não existia antes de Condoleeza Rice ter sugerido o nome do chefe da Exxon Mobil ao então Presidente eleito dos EUA – antes disso, Trump e Tillerson nunca se tinham encontrado.

Pouco mais de um ano depois, no passado dia 13 de Março, um tweet do Presidente norte-americano foi suficiente para tornar claro que se houve alguma tentativa de aproximação entre os dois homens, então os seus feitios funcionaram sempre com o magnetismo típico de dois ímans que se repelem.

"Mike Pompeo, director da CIA, vai ser o nosso novo secretário de Estado. Ele vai fazer um trabalho fantástico. Obrigado a Rex Tillerson pelo seu serviço." E assim, pela primeira vez na História dos EUA, em parte devido à relativa novidade das redes sociais, um secretário de Estado norte-americano era despedido através do Twitter – a Casa Branca garantiu que Trump comunicou o despedimento a Tillerson quatro dias antes, mas um dos subsecretários de Estado, Steve Goldstein, disse que o seu chefe só soube que estava fora da Administração quando leu o tweet do Presidente. Goldstein seria despedido nesse mesmo dia por contradizer a versão oficial, e Tillerson nunca falou sobre o assunto.

Os 423 dias de trabalho em conjunto só tiveram pontos baixos e outros pontos ainda mais baixos. E dificilmente se pode argumentar contra a escolha do momento mais baixo de todos – em Julho do ano passado, à saída de uma importante reunião no Pentágono em que ambos estiveram presentes, Tillerson virou-se para os seus conselheiros mais próximos e chamou a Trump "fucking moron".

Três meses depois, em Outubro, quando a NBC noticiou esse violento desabafo do secretário de Estado, o Presidente foi questionado pela revista Forbes sobre o caso e mostrou que a relação entre os dois tinha descido ao nível daquelas rixas infantis no recreio das escolas: "Acho que é fake news, mas se ele disse mesmo isso, então penso que teremos de comparar os nossos testes de QI. E posso dizer já quem vai ganhar."

Sugerir correcção
Ler 2 comentários