Resultado da Eurovisão: afinal não era a música

Um factor que nada tem a ver com a qualidade, como a ordem pela qual as canções são apresentadas no concurso, não deveria influenciar a pontuação das canções. Acontece que influencia.

Depois da Eurovisão de 2017, em que o milagre do Salvador (Sobral), talvez auxiliado pela vista do Papa, levou Portugal ao primeiro lugar, voltámos em 2018 a um lugar mais fiel à tradição histórica do país — o último. Não sendo especialista em música, abster-me-ei de comparar a qualidade da participação portuguesa à da vencedora Israelita. Até porque é um esforço inútil, dado que os resultados científicos mostram que a qualidade das canções não é o único factor que determina a vitória na Eurovisão.

Um factor que nada tem a ver com a qualidade, como a ordem pela qual as canções são apresentadas no concurso, não deveria influenciar a pontuação das canções. Acontece que influencia, mesmo a pontuação dos especialistas recrutados para os júris nacionais. Analisando os 41 concursos da Eurovisão entre 1957 e 1997 — nos quais a ordem das participantes era determinada por sorteio e não havia ainda voto do público — três investigadores holandeses concluíram que as canções são favorecidas quanto mais tarde surgem no concurso. Há uma exceção a esta regra do “quanto mais tarde, melhor”, que é a primeira canção. Parece que, na Eurovisão, a virtude está no princípio e no fim, mas não no meio. A primeira e a última canção obtêm uma pontuação 12% melhor do que as canções apresentadas imediatamente a seguir à primeira. O país que organiza o concurso surge também como sistematicamente beneficiado — embora isto não tenha ajudado Portugal no último sábado.

A edição do Economist da última semana deu voz a uma teoria da conspiração relativa aos votos da Eurovisão que afirma que existe troca de votos entre países. Por exemplo, no concurso de 2004, a vencedora Ucrânia recebeu 12 pontos da Estónia, Lituânia, Letónia, Polónia e Rússia, e 10 pontos da Bielorrússia e da Sérvia. Claro que isto poderia ser um sinal da qualidade da canção, mas acontece que a média de pontos obtidos pela Ucrânia foi de 8,1; portanto, os seus vizinhos votaram bastante acima da média. No mesmo concurso, a Holanda, com uma média de pontos de 2,3, recebeu 5 pontos da vizinha Bélgica, que por sua vez obteve 6 pontos da Holanda. Este tipo de exemplos pode sugerir que os países, de forma mais ou menos tácita, têm acordos em que cada um dá uma pontuação elevada à canção do outro, e reciprocamente ou, como explica o Economist, os votos que os países se atribuem entre si sugerem clusters que não poderiam resultar de uma mera votação aleatória. Acontece que nem sempre o que parece é. Alguns investigadores argumentam que esta aparente troca de votos pode ser explicada por uma teoria menos conspirativa – e sem dúvida menos explosiva para as redes sociais —, segundo a qual os países votam de acordo com o grau de afinidade cultural que têm entre si.

Um dos elementos mais importantes para explicar os votos aparentemente “trocados” é a proximidade da língua falada nos dois países, medida pela percentagem de palavras nos dois idiomas que descendem de uma palavra ancestral comum, de entre uma lista de 200 palavras fundamentais, tais como mãe, pai, ou sangue. A proximidade cultural também importa. Podemos perguntar-nos se faz sentido medir a “cultura nacional”, ou até se tal existe – mas não é por aqui que quero ir. Existe uma escala de valores que tem sido utilizada, inicialmente compilada por Geert Hofstede e, para as curiosas, disponível aqui. Na análise dos votos da Eurovisão, um país dá mais votos àqueles com os quais tem proximidade cultural nas dimensões de “power distance” e “uncertainty avoidance”. A primeira mede a desigualdade de poder na sociedade e a segunda é a forma como a sociedade lida com a incerteza e a ambiguidade. A influência nos votos não se esgota na língua ou na cultura: e facto de a maior parte da população professar a mesma religião, de os países terem uma fronteira comum, ou até o número de quilómetros dessa fronteira têm também preponderância.

Sabemos que o mesmo tipo de factores tem um impacto no volume de trocas comerciais entre países. E as instituições da União Europeia? Será que os votos em políticas comuns – que pela sua natureza geram muitas vezes ganhadores e perdedores – são também permeáveis a este tipo de enviesamento cultural? É provável que a resposta seja sim.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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