Tiago Rodrigues cancela espectáculo em Israel e adere a boicote cultural

A 4 e 5 de Junho, o autor português deveria apresentar no Israel Festival, em Jerusalém, a peça By Heart. Esta quinta-feira comunicou o cancelamento do espectáculo à tutela e ao evento.

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Tiago Rodrigues Nuno Ferreira Santos

Tiago Rodrigues, actor, encenador, dramaturgo e director do Teatro Nacional Dona Maria II, cancelou esta quinta-feira a sua participação no Israel Festival, em Jerusalém, que deveria acontecer nos próximos dias 4 e 5 de Junho.

A decisão foi tomada em protesto contra a associação do certame às comemorações oficiais do 70.º aniversário do Estado de Israel – por assim implicar politicamente o seu trabalho sem que essa associação lhe tivesse sido comunicada e quando não há nos materiais oficiais qualquer alusão à Palestina.  E o encenador tomou esta decisão também em repúdio pelo “massacre de dezenas de civis pelas forças armadas israelitas (além de mais de dois mil feridos, entre os quais crianças) durante os protestos que coincidiram com a abertura da embaixada dos EUA em Jerusalém”.

A citação acima consta do comunicado esta quinta-feira enviado por Tiago Rodrigues à administração do Teatro Nacional Dona Maria II, à secretaria de Estado da Cultura e aos ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros. Em função da integração das suas peças no reportório do Teatro Nacional e respectiva cedência de direitos, a apresentação de By Heart em Jerusalém estava, por isso, contratualizada com a sala que o autor actualmente dirige.

 Foi na segunda-feira, na sequência das 60 mortes confirmadas de palestinianos na Faixa de Gaza, vítimas de disparos das tropas israelitas – recorde-se que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu afirmou que métodos “não letais” não funcionam em Gaza – que a decisão foi tomada. “Confrontado com o silêncio por parte do festival que me tinha convidado a apresentar-me em Jerusalém, achei que se confirmava um imperativo de consciência que, durante todo o dia [segunda-feira], me pareceu inevitável na forma do cancelamento da minha participação”, declarou Tiago Rodrigues ao PÚBLICO.

A esse silêncio do Israel Festival, que o director do Teatro Nacional Dona Maria II, classifica como “perturbante e inaceitável em relação às acções violentas do governo israelita”, junta-se um outro respeitante a “um discurso crítico e plural em relação àquela que é a História da região, parecendo-me que o discurso do festival é completamente ausente de um olhar crítico para o actual governo mas também para estes 70 anos que correspondem igualmente à opressão do povo palestiniano.”

Embora Tiago Rodrigues não tenha conhecimento de semelhantes tomadas de posição de outros artistas programados para o Israel Festival (a presente edição deste evento, criado em 1961, a arrancar dia 23 de Maio, anuncia apresentações, entre outros, de Laurie Anderson, Christoph Marthaler, Rimini Protokoll e Boris Charmatz), reconhece ao PÚBLICO que a sua decisão final foi tomada “depois de algumas conversas com amigos e colegas, e da leitura de semelhantes posições de intelectuais e artistas, inclusive israelitas, a favor do boicote cultural a Israel”. “Essa reflexão faz-me não só cancelar este espectáculo como considerar que, apesar de compreender a diferença entre um povo e administração pública do seu país, neste caso é fundamental tomar uma posição clara e aderir ao boicote cultural. Portanto, não estarei disponível a partir de agora, para ponderar outras idas a Israel enquanto não houver uma mudança drástica das políticas do governo israelita.”

Uma mudança que, concretiza, teria de seguir “no sentido do respeito pelos direitos humanos e pela tentativa de encontrar uma solução pacífica – de dois estados ou de um estado – para a coexistência de todas as pessoas no território”. O movimento BDS (Boicotes, desinvestimento e sanções), que há vários anos tem juntado figuras como Roger Waters, Brian Eno, Thurston Moore ou Ken Loach, ao qual Tiago Rodrigues agora se junta, “pode contribuir para uma verdadeira mudança, à semelhança do que aconteceu com o boicote à África do Sul durante a era apartheid”, considera.

A palavra como resistência

Em Jerusalém, Tiago Rodrigues iria apresentar By Heart, espectáculo construído a partir de um soneto de Shakespeare, mas sobretudo em torno da ideia da literatura e da memória como acto de resistência diante de regimes opressivos. Salientando que a sua decisão seria a mesma independentemente do espectáculo com que se propusesse participar no Israel Festival, o autor português não ignora que By Heart, a ser apresentado no festival, “seria vítima de uma instrumentalização pela natureza dos temas que trata, por ser um espectáculo com várias menções, por exemplo, à cultura judaica, no sentido de que a história do povo judeu no século XX está repleta de gestos de resistência através da palavra”.

Se Tiago Rodrigues acusa o festival de ser conivente, nem que seja por omissão, com as acções de um governo que considera “violar deliberadamente os direitos humanos”, afirma que não poderia permitir-se alinhar também com essa conivência. O não cancelamento, acredita, serviria também para sustentar “uma falsa aparência de normalidade e de pluralidade”.

Até ao momento não é conhecida qualquer reacção do Israel Festival ao cancelamento das apresentações de By Heart em Jerusalém, numa posição que, frisa, vincula o cidadão e o artista mas não o Teatro Nacional Dona Maria II.

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