Ventos e tempestades

Em cada homem forte que aparece a autoproclamar-se vingador das humilhações passadas sofridas por nação, clã ou clube, está sempre um charlatão.

Está tudo a acontecer ao mesmo tempo em todo o lado. Infelizmente, é uma novela grotesca. Dos cem quilómetros de distância que levam do sorriso impecável de Ivanka Trump aos mais de cinquenta mortos ali ao lado, na faixa de Gaza. Até a uma Hungria onde, depois de umas eleições descritas pelos observadores internacionais como livres mas não justas, Viktor Orbán tomou posse proclamando que “a democracia liberal acabou” (o que ele quer dizer não é que o liberalismo acabou, mas que acabou aquilo a que em Portugal chamaríamos democracia constitucional). Passando por um Trump que rasga um acordo anti-proliferação nuclear com o Irão pela única razão de que foi Obama que o assinou, e que inicia uma guerra comercial com a China para vir dizer através do twitter que está em conversações para arbitrariamente safar dessa guerra comercial uma empresa de telecomunicações chinesa, ao arrepio de qualquer previsibilidade e equidade.

E agora até temos, para nossa vergonha, Portugal nas manchetes da imprensa internacional porque uma meia centena de energúmenos decidiu invadir o centro de treinos de um clube de futebol e agredir jogadores e treinadores perante a bizarra passividade de um presidente do clube tão conhecido pela loquacidade e que agora diz apenas esta coisa extraordinária de que “temos de nos habituar que o crime faz parte do dia-a-dia”.

(E não, isto não é só futebol. Continuar a fingir que isto é só futebol contribui apenas para um perigoso clima de impunidade no qual os atropelos aos direitos e às liberdades mais básicas das pessoas doem tanto como se de violência política se tratasse — sem esquecer, é claro, que o vandalismo no futebol é desde há muito um meio privilegiado para as infiltrações de extrema-direita.)

O que há em comum entre todas estas manifestações de insanidade? Uma doença que, como o paludismo, vai e volta na história da humanidade: o culto do homem forte. Desta vez, não chegou sem se fazer anunciar. Em 2016 já era nítida a visão que animava Trump e àcerca da qual escrevi aqui: um mundo feito de compartimentos estanques, tendo apenas em comum a defesa intransigente do interesse próprio (como se este pudesse ser desligado do interesse comum) e cada um deles dominado por um homem forte.

Há método nesta insanidade: em cada homem forte que aparece a autoproclamar-se vingador das humilhações passadas sofridas por nação, clã ou clube, está sempre um charlatão que só pensa no seu interesse pessoal e na sua conta bancária, um corrupto a braços com problemas na justiça (Trump, Netanyahu), um homem em processo de fuga, à frente das tempestades que ele próprio criou.

Trump é a versão bronca e boçal desta mundividência. Mas por detrás do fenómeno houve visões ideologicamente mais polidas, e é bom que não nos esqueçamos disso. Elas contribuíram para criar a ideia de que em cada um destes casos não estávamos perante deploráveis mas perante gente com razões de queixa legítimas. Há pouco tempo ouvi um intelectual progressista explicar-me que o populismo era apenas a defesa de executivos menos constrangidos, e que esse era um ponto de vista perfeitamente razoável. O que ele não imaginava é que os constrangimentos de que os populistas querem livrar os executivos — de países, empresas, clubes e organizações — são os constrangimentos do estado de direito, das liberdades individuais, da comunidade internacional ou da sociedade civil — enfim, tudo aquilo que puser entraves no caminho do homem forte. Com a sua visão em túnel, o intelectual que justificou o populismo abriu caminho ao homem forte. Devia ter sido evidente para quem conhece um pouco de história. Não viu quem não quis ver.

O homem forte não chegou ao poder sozinho. Aquilo que o trouxe ao poder foi a ideia de que “nós” somos especiais e que connosco ninguém brinca, que “nós” estamos sozinhos e o mundo lá fora está contra nós (a solidariedade internacional é uma treta, como já ouvi dizer), que “eles” só ganham porque o jogo está viciado e que “nós” só ganharemos quando formos tão viciosos como “eles” (o desportivismo, dizia-se, é outra treta também).

Isto acaba em desgraça. Sempre. Ou em desgraça ridícula. Ou em desgraça trágica. E quando se chega ao ridículo ou à tragédia, aqueles que foram compreensivos com a ascensão do homem forte vão estar tão chocados com o que aconteceu como todas as outras pessoas que não são más pessoas. E como todas as pessoas que não são más pessoas, vão estar convencidos que não tiveram nada a ver com o que aconteceu.

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