As páginas escondidas do Diário de Anne Frank contêm piadas “obscenas”

As notas da jovem vítima do Holocausto foram publicadas, pela primeira vez, em 1947. O conteúdo de duas páginas, que terão sido ocultadas pela própria Anne Frank, permaneceu um mistério durante mais de 70 anos.

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Anne Frank, de 13 anos, escreveu o seu diário enquanto esteve presa num esconderijo durante a Segunda Guerra Mundial WIKICOMMONS,WIKICOMMONS
Casa de Anne Frank, o diário de uma jovem garota
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O texto por baixo das páginas ocultas, mostrado durante uma conferência de imprensa, em Amesterdão LUSA/BAS CZERWINSKI
O Diário de uma Jovem, Anne Frank House, Ditari
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As páginas ocultas do Diário de Anne Frank, tapadas com um papel castanho LUSA/BAS CZERWINSKI

Duas páginas do Diário de Anne Frank que estavam até agora ocultas – cobertas com um papel castanho que a jovem terá colado por cima delas – foram analisadas por investigadores holandeses, tendo revelado conteúdo de cariz sexual.

A divulgação das páginas 78 e 79 foi feita durante uma conferência de imprensa, nesta terça-feira, em Amesterdão. Os apontamentos, datados de 28 de Setembro de 1942 – menos de três meses depois de a jovem se ter escondido dos nazis, com a família, num anexo secreto naquela mesma cidade holandesa –, contêm quatro piadas que a própria considera "obscenas" ("dirty jokes", em inglês), assim como reflexões sobre o desenvolvimento da mulher, o sexo e a prostituição, de acordo com o jornal espanhol El País.

"Vou usar esta página estragada para escrever piadas obscenas", anuncia Anne Frank, na altura com 13 anos, numa das páginas onde também estão outras anotações e frases riscadas. "O que estão as raparigas alemãs da Wehrmacht [forças armadas alemãs] a fazer na Holanda? A servir de colchões aos soldados" – é uma das piadas de Anne Frank, de acordo com a BBC. "Um homem tinha uma esposa muito feia e não queria ter relações sexuais com ela. Uma noite, chegou a casa e viu um amigo na cama com a sua esposa. Disse: 'Ele pode e eu tenho que!'" ("He gets to and I have to", na expressão em inglês) — faz também parte do conjunto de anedotas divulgadas, segundo a agência Associated Press.

Anne Frank escreveu ainda algumas dezenas de linhas sobre educação sexual, imaginando que teria de dar a alguém explicações sobre sexo. "Às vezes imagino que alguém vem ter comigo e pede para o informar sobre assuntos sexuais. Como faria isso? Aqui está a resposta", questionava-se, de acordo com o New York Times. A jovem começa então a reflectir sobre as relações sexuais, dizendo que quando uma rapariga tem a menstruação, "por volta dos 14 anos", "é um sinal de que está pronta para ter relações com um homem, mas isso não se faz antes do casamento". A partir de então, nas palavras de Anne Frank, "também se pode decidir se se deseja ter filhos ou não". Caso a resposta seja positiva, "o homem deita-se sobre a mulher e deixa a sua semente na vagina dela. Tudo acontece com movimentos ritmados", explica a jovem, segundo o jornal El País

A prostituição é outro dos temas abordados: "Todos os homens, se forem normais [um apontamento que pode ser uma referência à homossexualidade], vão com mulheres. Essas mulheres abordam-nos na rua e, depois, vão embora juntos. Em Paris, existem casas muito grandes para isso. O papá esteve lá", diz, citada pelo mesmo jornal espanhol.  

Uma "adolescente inquisitiva"

De acordo com especialistas, estas páginas permitiram averiguar novos traços da sua personalidade. "Anne Frank escreve sobre sexualidade de forma desarmante" e, "como todos os adolescentes, tem curiosidade sobre esse assunto", concluiu Ronald Leopold, director-executivo da Casa de Anne Frank, museu de Amesterdão que é uma das instituições responsáveis pela investigação. "Ao longo das décadas, Anne cresceu e tornou-se o símbolo mundial do Holocausto, e Anne, a rapariga, foi sendo progressivamente relegada para segundo plano. Estes textos descobertos – literalmente – trazem a adolescente inquisitiva e, em muitos aspectos, precoce para primeiro plano”, explicou, citado pela Associated Press.

"Quem ler as passagens que foram agora descobertas não conseguirá suster um sorriso", afirmou Frank van Vree, director do Instituto para o Estudo da Guerra, do Holocausto e do Genocídio da Holanda (NIOD, na sigla holandesa), que colaborou na investigação. "As piadas obscenas são um clássico entre as crianças em crescimento. Elas deixam claro que Anne, com todos os seus dons, era, acima de tudo, também uma rapariga comum", acrescentou o investigador, de acordo com a mesma agência noticiosa.

As páginas agora reveladas tinham sido cobertas com um papel castanho que terá sido colado por Anne Frank de forma a esconder os seus pensamentos mais íntimos. "Provavelmente estaria com medo de que outras pessoas com quem estava no esconderijo — o pai, a mãe ou a outra família — descobrissem o seu diário e lessem essas coisas", esclareceu Ronald Leopold. As novas tecnologias digitais tornaram possível decifrar os textos sem danificar as páginas, a partir de fotografias tiradas em 2016, durante um processo de verificação da condição dos diários, que é feito regularmente. Os investigadores usaram um software de processamento das imagens para tornar o texto legível, segundo a agência Reuters.

A evolução como escritora

Esta não foi a única vez que a jovem judia escreveu conteúdo de carácter sexual, existindo outras referências ao longo dos seus manuscritos sobre a sexualidade e a anatomia feminina. Porém, de acordo com a Associated Press, algumas dessas anotações tinham sido censuradas pelo pai de Anne Frank antes de o diário ser publicado pela primeira vez, em 1947, tendo ficado disponíveis em edições completas mais recentes.

Por isso, há quem considere que o conteúdo agora revelado não é escandaloso ou surpreendente, mas que é interessante "do ponto de vista do seu desenvolvimento como escritora e adolescente", tendo em conta que Anne Frank "cria uma situação fictícia que torna mais fácil para ela abordar os tópicos sensíveis", explicou Ronald Leopold, citado pelo Guardian. Peter de Brujin, investigador no Instituto Huygens para a História da Holanda que fez parte da investigação, acredita que as páginas mostram uma tentativa de escrita num tom mais literário. "Ela começa a falar sobre sexo com uma personagem, criando uma espécie de ambiente literário para escrever sobre um assunto com o qual pode não estar confortável", explicou Brujin ao New York Times.

"Nem sempre é bom seguir o desejo de um autor"

Confrontado com o facto de ter divulgado as páginas que a jovem queria manter ocultas, o museu de Anne Frank esclareceu que o diário tem um significativo "interesse público e académico". Teresien da Silva, responsável pela colecção na Casa de Anne Frank, esclarece ao New York Times que "nem sempre é bom seguir o desejo de um autor". "Às vezes é importante para a investigação científica e também é bom para o público saber o que ela não queria publicar", concluiu a especialista.

O Diário de Anne Frank — que recebeu no seu 13.º aniversário foi escrito durante o período em que, juntamente com a sua família e outros quatro judeus, a jovem judia esteve escondida dos nazis num anexo secreto na cidade holandesa, entre Julho de 1942 e Agosto de 1944 — quando foram descobertos. Dois anos depois de a jovem ter morrido no campo de concentração de Bergen-Belsen, em 1945, aos 15 anos, o seu pai, Otto Frank, o único membro da família a sobreviver à perseguição nazi, publicou o livro — classificado como património mundial pela Unesco.

Texto editado por Hugo Torres

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