Morreu o jornalista e escritor norte-americano Tom Wolfe

Pioneiro do New Journalism e autor de um dos romances mais representativos da ficção americana dos anos 80, A Fogueira das Vaidades, o escritor morreu esta segunda-feira em Nova Iorque, aos 88 anos.

Tom Wolfe, de volta ao sangue, a fogueira das vaidades
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Reuters/JEFF CHRISTENSEN

Celebrizado internacionalmente como autor do romance satírico A Fogueira das Vaidades (1987), o jornalista, ficcionista e ensaísta norte-americano Tom Wolfe morreu esta segunda-feira aos 88 anos, num hospital de Manhattan onde fora internado com uma infecção. A notícia foi confirmada pela sua agente literária, Lynn Nesbit, ao jornal The New York Times.

Se o sucesso de A Fogueira das Vaidades, que muitos críticos consideram ser o romance que melhor capta a essência da sociedade americana dos anos 80, e em particular a gananciosa, desregrada e racista elite financeira nova-iorquina, quase transformou Tom Wolfe num desses autores a quem se associa um único livro, a verdade é que em 1987, quando saiu esta sua primeira incursão na ficção narrativa, o escritor era já um repórter célebre, autor de trabalhos que contribuíram para alargar as fronteiras da escrita jornalística, como o livro-reportagem The Electric Kool-Aid Acid Test, de 1968, no qual relata em primeira mão e num registo altamente experimental as experiências de uma célebre comunidade hippie da Califórnia, os Merry Pranksters, liderados pelo carismático Ken Kesey, que viajavam numa antiga camioneta escolar decorada com pinturas psicadélicas e consumiam doses maciças de LSD.  

Para reflectir a excentricidade maníaca de Kesey e dos seus companheiros, Wolfe usa onomatopeias, itálicos, pontuações enfáticas ou maiúsculas, e subverte o habitual relato cronológico do jornalismo utilizando saltos narrativos provocados por associações de ideias e outras técnicas mais associadas à narrativa de ficção.

Precisamente no mesmo dia em que lançou este livro, hoje visto como um dos primeiros e mais notáveis exemplos do chamado “novo jornalismo”, Wolfe publicou também The Pump House Gang, um volume de textos ensaísticos relacionados com a contracultura dos anos 60.  

E alguns anos antes, em 1965, publicara já a sua obra de estreia, a colectânea de ensaios The Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby, cujo título aludia a uma célebre reportagem sobre carros artilhados que o autor publicara em 1963 na revista Esquire, e à qual dera o sugestivo, algo extenso e deveras intraduzível título There Goes (Varoom! Varoom!) That Kandy-Kolored (Thphhhhhh!) Tangerine-Flake Streamline Baby (Rahghhh!) Around the Bend (Brummmmmmmmmmmmmmm)…

Com The New Journalism (1973), uma antologia de textos que pretendia ilustrar a variedade de registos e tópicos do novo jornalismo e funcionar como uma espécie de manifesto do movimento, Wolfe consagra-se a si próprio como um dos praticantes do género a merecer reconhecimento, seleccionando textos seus ao lado dos de autores como Truman Capote ou Norman Mailer.  

No final dessa década, em 1979, publica um livro-reportagem sobre a coragem dos pilotos de testes e o seu envolvimento nos primeiros programas espaciais, The Right Stuff, notavelmente transposto para o cinema em Os Eleitos (1983), de Philip Kaufman, com Sam Shepard. É hoje a sua única obra que pode competir em popularidade com A Fogueira das Vaidades, que também foi adaptada ao cinema, em 1990, no filme homónimo de Brian de Palma, com Tom Hanks, Bruce Willis e Melanie Griffith. 

O obituário que lhe dedica o The New York Times recorda o algo ambíguo juízo do ensaísta Joseph Epstein sobre o talento literário de Tom Wolfe: "Como campeão do esplendor [estilístico] não tem rival no mundo ocidental. A sua prosa é geralmente do estilo barroco-caçadeira, por vezes descambando em rococó-metralhadora, como no seu artigo sobre Las Vegas, que começa repetindo 57 vezes a palavra 'hérnia'". Numa versão menos contaminada pelo registo do próprio Wolfe, William F. Buckley, fundador da National Review,  defende que o autor de A Fogueira das Vaidades "é provavelmente o mais dotado escritor americano", precisando que quer com isso dizer que "consegue fazer mais coisas com palavras do que qualquer outro". 

Como romancista, Tom Wolfe ainda conseguiu ter bastante atenção crítica e sucesso comercial com Um Homem em Cheio (1998), protagonizado por um magnata do imobiliário – o livro esteve dez semanas na lista de best-sellers do New York Times e vendeu 1,4 milhões de exemplares –, mas os seus dois romances posteriores, Eu Sou a Charlotte Simmons (2004) e Back to Blood (2012), passaram mais despercebidos.

Continuou também a publicar livros de ensaios, abarcando temas tão diversos como a história da arquitectura moderna, em From Bauhaus to Our House (1981), ou a teoria da evolução e a linguística, no recente The Kingdom of Speech (2016), no qual critica Charles Darwin por não ter assinalado devidamente as suas dívidas a Alfred Wallace e discute as teorias de Noam Chomsky, argumentando que o que singulariza o ser humano é a fala e não a evolução.

Nascido e criado em Richmond, Virginia, em 1930, Thomas Kennerly Wolfe Jr. doutorou-se em Estudos Americanos pela Universidade de Yale em 1957. No ano anterior aceitara um emprego como repórter num jornal do Massachusetts e irá recusar, nos anos seguintes, vários convites para trocar o jornalismo pela docência.

Em 1962 tornou-se repórter do jornal New York Herald Tribune, ao mesmo tempo que integrava a equipa de redactores da revista New York, que então era ainda o suplemento dominical daquele jornal. É nesta altura que se radica em Nova Iorque, cidade que nunca mais abandonaria, e da qual se tornou um dos mais carismáticos cronistas. 

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