Gulbenkian tem 2,5 milhões para “dar a vez às organizações do Portugal real”

Fundação vai destinar 10 milhões de euros, durante cinco anos, para um programa dedicado ao conhecimento. Parte deste investimento irá para associações ou colectivos que se proponham a desenvolver as competências sociais e emocionais de crianças e jovens. Darão origem às Academias do Conhecimento.

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Pedro Cunha: “Mobilizar a sociedade civil para o humanismo, a única tecnologia que é única” MIGUEL MANSO

Uma previsão do Fórum Económico Mundial diz que quatro em cada cinco crianças que entram hoje na escola terão empregos que ainda não existem. Não sendo possível prepará-las com base num currículo para um conteúdo que nem sequer existe, como se faz? Trabalhando-lhes a resiliência, o pensamento crítico, a capacidade de organizar, construir e discernir. A resposta é da Fundação Calouste Gulbenkian que vai apoiar associações, colectivos e autarquias com 2,5 milhões de euros nos próximos cinco anos para que desenvolvam este tipo de competências nos mais novos. Para os preparar para o futuro.

Para isso, a fundação vai abrir candidaturas (a partir de 17 de Maio) para organizações da sociedade civil. As instituições com as melhores propostas vão receber formação e mentoria, transformando-se naquilo a que a Gulbenkian chama “Academias do Conhecimento”.

No prazo de cinco anos, a fundação quer chegar a 100 associações, 10 mil crianças e jovens até aos 25 anos. E trabalhar com eles o pensamento crítico, a capacidade de “resolver problemas complexos em climas de grande incerteza”, o trabalho em equipa, a resiliência, a superação da frustração e a capacidade de lidar com a mudança. Em suma, as chamadas soft skills, enumera Pedro Cunha, director-adjunto do programa que chancela as academias, o Gulbenkian Conhecimento.

“A maior certeza que temos quanto ao emprego do futuro é que tudo vai mudar. E a única forma de nos prepararmos é reforçando as competências que melhor nos habilitam para esse futuro que é desconhecido”, sublinha o gestor de projectos.

Há dados que o comprovam: de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, metade dos postos de trabalho actuais na Europa estão em risco devido à automação e 40% das competências-chave do futuro não são as mesmas de hoje, fez notar o Banco Mundial.

O gestor de projectos desconstrói também a ideia de que estas competências são inatas. “Vivemos com a crença, que não tem validade científica, de que a personalidade não se desenvolve. Mas estudos comprovam que estas características não só se desenvolvem como podem superar o impacto que limitações cognitivas ou determinantes socioeconómicos têm no sucesso de alguém”, afirma Pedro Cunha. Quer com isto dizer que um jovem com grande capacidade de comunicação, resiliente, que reage bem à mudança pode ser mais bem-sucedido do que outro com quociente de inteligência superior ou com origem num meio económico mais favorecido.

Sair de Lisboa

A Gulbenkian procura, desta forma, complementar o trabalho das escolas, nunca substituí-lo. As academias assentam na ideia de que a educação não é uma competência exclusiva do sistema educativo formal. E, para além de serem “uma aposta nos jovens, são uma forma de valorizar e reconhecer o tecido social português”, acredita o gestor de projectos. “A investigação demonstra que estas associações, que fazem um trabalho muitas vezes silencioso, desenvolvem as competências que hoje mais valorizadas são no mercado."

Importa, por isso, chegar a elas. A fundação assume que quer sair de Lisboa e apoiar no processo de candidatura. “Queremos dar a vez às organizações do Portugal real. E aí não existem especialistas em candidaturas e são quase todos voluntários.” Por isso, numa primeira fase pede-se apenas “uma ideia muito genérica” do projecto. A fundação dá depois consultoria para que as autoras das melhores ideias construam uma candidatura que venha a ser aprovada pela Gulbenkian. “Vamos apoiar as melhores ideias, não as candidaturas tecnicamente melhores”, reforça Pedro Cunha.

10 milhões de euros

Este é um dos quatro eixos de acção – e o primeiro a arrancar – no âmbito de um programa maior, que a fundação assume como um dos seus maiores projectos dos últimos anos. Sucede ao Inovar em Saúde. E surge da percepção de que a sociedade está “encantada com a tecnologia”, mas “desvaloriza o homem por detrás da máquina”. O que leva a Gulbenkian a disponibilizar um total de 10 milhões de euros para “investir naquilo que faz de nós humanos, onde nunca teremos competição das máquinas”, sustenta Pedro Cunha.

Para além das academias, o Gulbenkian Conhecimento terá oficinas (concursos de ideias), desafios (dando continuidade ao projecto que propõe a adopção de mudanças comportamentais com vista à melhoria dos sistemas, como é exemplo a iniciativa Stop Infecção Hospitalar) e um laboratório de conhecimento, que assenta na ideia de que "o amanhã é para pensar hoje".

Este é um programa que, aos olhos da Gulbenkian, marca uma mudança de rumo: o afastar dos meios institucionais de poder com que tinha vindo a trabalhar, para se aproximar da sociedade civil e procurando tornar-se “numa instituição relevante para os jovens”.

Na base disto estão várias premissas. Por um lado, a percepção de que a sociedade se está a transformar ao ritmo acelerado da automação, robotização e desmaterialização, não complementando este valorizar da tecnologia com a valorização da humanidade que está por trás. Por outro, constata-se os efeitos do imediatismo e da hiperconectividade, “em que estamos sempre ligados a qualquer coisa, mas ao mesmo tempo muito desligados dos outros”.

Neste pós-modernismo “das sociedades líquidas, do consumo rápido e da superficialidade, a Fundação Calouste Gulbenkian tem a obrigação de complementar com investimento na cultura, na educação, nas artes, na criatividade, no pensamento crítico”, diz Pedro Cunha.

O que serve de mote para uma nova agenda a iniciar-se este ano: “Mobilizar a sociedade civil para o humanismo, a única tecnologia que é única”.

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