E se a política falasse do futuro?

Infelizmente, enquanto a esquerda estiver ocupada a recriar país a país as discussões táticas dos últimos vinte anos não haverá pensamento a sério sobre o que podemos fazer nos próximos vinte.

No outro dia ouvi uma daquelas conversas que mudam tudo.

“— Bom dia, como posso ser útil?

— Bom dia! Queria marcar um corte de cabelo para uma cliente. De preferência no dia 3 de maio.

— Certo, dê-me só um segundo.

— Hum-hum.

— A que horas?

— Ao meio-dia.

— A essa hora não temos nada. O mais perto é à uma e um quarto.

— Não têm nada entre as dez e o meio-dia?

— Depende do serviço. O que é que ela gostaria?

— Um corte de mulher, simples.

— Pode ser às dez da manhã?

— Às dez está bem.

— Certo. Qual é o nome dela?

— Ela chama-se Lisa.

— Perfeito. Espero pela Lisa no dia 3 às dez.

— Ótimo! Obrigado.

— Tenha um bom dia, obrigado!”

E porque é que esta conversa muda tudo? Porque se trata de uma conversa entre um robot e uma trabalhadora.

O robot, que era apenas um programa num computador algures no mundo, tinha recebido uma ordem escrita: “marca um cabeleireiro para dia 3 entre as dez e o meio-dia”. Do resto tratou ele e escreveu de volta a quem lhe tinha feito o pedido, com a marcação confirmada. A trabalhadora não deu por nada e respondeu como se estivesse a falar com uma pessoa.

A conversa estava a ser ouvida por uma plateia cheia de gente, numa conferência da Google, que começou a aplaudir espontaneamente quando o robot respondeu “hum-hum” à trabalhadora. Os robots da Google introduzem pausas, hesitações, “aaaahhh” e “hum”, para terem um diálogo que engana os trabalhadores com quem falam.

A plateia estava em êxtase. Quem não tem uma agenda cheia de coisas que deveria fazer e das quais gostaria de encarregar um assistente virtual? Mas havia qualquer coisa de chocante naquele contentamento típico das Silicon Valley deste mundo. Era a desconsideração por quem estava do outro lado da chamada, uma trabalhadora incauta que não fazia ideia de que estava já a viver um episódio de ficção científica na vida real. Gente a obedecer a ordens de robots? Já existe. Eu ouvi na semana passada.

Enquanto a ideia que fizemos dos robots foi aquela de máquinas a imitar humanos, com braços e pernas, pensámos que eles iriam começar pelos trabalhos braçais, pesados e desagradáveis. Só que fazer um robot para apanhar morangos é ainda muito difícil; no imediato será mais fácil substituir telefonistas, contabilistas, advogados e jornalistas. Dependendo de muitos fatores que não controlamos, a automação pode vir para atenuar ou exacerbar os nossos problemas políticos. Criar uma segmentação do mercado de trabalho em que pobres (imigrantes, as mais das vezes) apanham fruta debaixo do sol ou atendem telefonemas a robots ao passo que os rendimentos se vão concentrando ainda mais no topo foi uma hipótese que ficou mais forte depois daquela conversa da Google.

Houve um tempo em que a política — em particular à esquerda — falava do futuro. Não é o que se passa agora. Em face de uma direita populista que distrai as pessoas com o ressentimento e a sociedade do espectáculo, a esquerda ficou dividida em dois campos: um que ainda vende uma versão do otimismo de mercado dos anos oitenta e noventa, em que tudo vai ficar bem sem precisarmos de nos mexer muito; e outro que fala da globalização e da automação como se fossem coisas opcionais que pudéssemos desligar num interruptor algures cá dentro de casa para podermos fazer política à moda antiga enquanto o resto do mundo acontece lá fora.

Nenhuma destas hipóteses é hoje válida. O estado social mínimo não vai chegar para o que aí vem. E a mudança tecnológica tem um impacto global que só é possível regular através de uma intervenção em mercados com escala e impacto sobre o poderio das grandes multinacionais. E isso é no mínimo à escala europeia, não só como vemos no caso da proteção de dados mas também na necessidade de novas prestações sociais como um subsídio de desemprego pelo menos parcialmente europeu. É que mesmo a regulação não basta. É preciso inovar em políticas sociais de pré-distribuição (e não só redistribuição), atualização dos serviços públicos, partilha do tempo de trabalho e acesso a educação numa perspetiva de proteção, emancipação e formação em simultâneo (e não só de rede de segurança como antes). E para isso é necessário não só preservar o estado social, como ampliá-lo tanto em âmbito como em escala.

Infelizmente, enquanto a esquerda estiver ocupada a recriar país a país as discussões táticas dos últimos vinte anos não haverá pensamento a sério sobre o que podemos fazer nos próximos vinte.

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