Da Bósnia a Aachen: 25 anos em que pouca coisa mudou

Os europeus não podem passar mais 25 anos a assinar belas declarações sobre a defesa e permitir que fique quase tudo na mesma, como nos últimos 25.

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1. Quando, em 1992, rebentou a guerra dos Balcãs, dando início à desagregação sangrenta da Jugoslávia, a União Europeia não hesitou um segundo em declarar que trataria do assunto, remetendo os EUA para o banco de trás. Estávamos ainda no início de uma era que prometia ser de paz e de prosperidade, deixando para trás a Guerra Fria. A Sérvia de Slobodan Milosevic desencadeou uma guerra de agressão sem clemência contra as outras “repúblicas” da ex-Jugoslávia, iniciando um processo de “limpeza étnica” dirigido, em primeiro lugar, aos muçulmanos bósnios, que chocou profundamente a Europa, convencida de que o genocídio deixara de ser possível em território europeu. Primeiro, foi a guerra com a Croácia. Depois a Bósnia, maioritariamente muçulmana, que se transformou rapidamente numa tragédia com centenas de milhares de mortos. Os governos da União, ainda só ocidental, dividiam-se em função dos seus “aliados” do tempo da II Guerra. A Alemanha reconheceu a independência da Croácia sem esperar, sequer, pelos seus parceiros europeus. A França levou demasiado tempo a condenar a Sérvia. Sucediam-se os planos e os enviados especiais, sem qualquer resultado. A Europa percebeu demasiado tarde que os EUA teriam de regressar ao assento do condutor. O massacre de Srebrenica, perante o olhar indiferente dos Capacetes Azuis holandeses, foi o ponto de não retorno. As opiniões públicas ocidentais denunciavam a inacção dos governos. Os EUA entraram em força no jogo diplomático. Fortaleceram militarmente os muçulmanos bósnios. Obrigaram o líder sérvio, Radovan Milosevic, a sentar-se à mesa das negociações, na base militar de Dayton, até assinarem um acordo que encontrava uma solução para a Bósnia. No início de 1996, uma força militar da NATO de 60 mil homens chegou ao terreno para garantir que o acordo seria cumprido. Em 1999, quando a Sérvia repetiu o mesmo crime, desta vez contra os albaneses do Kosovo, o Ocidente reagiu muito mais depressa. Mais 40 mil homens da NATO foram para o terreno, garantindo o cumprimento dos tratados. A Eslovénia e a Croácia são hoje membros da União Europeia. A Sérvia faz o seu caminho na mesma direcção. A paz regressou. A Europa investiu na reconstrução dos Balcãs Ocidentais. A perspectiva de adesão funcionou a favor da democratização.

2. Em 1998, Jaques Chirac e Tony Blair encontraram-se numa cimeira em Saint-Malo para lançarem a primeira pedra de uma “autêntica” capacidade militar europeia. Ambos se sentiam humilhados pela sua incapacidade de resolver um problema militarmente fácil sem o apoio dos Estados Unidos. Estávamos ainda no tempo das intervenções humanitárias, resultantes do princípio da ONU sobre a “responsabilidade de proteger”, incluindo os povos vítimas da agressão dos seus próprios governos. Desde então, a Europa tenta construir essa capacidade militar sem conseguir resultados significativos. Levou 10 anos a debater se minaria, ou não, a NATO. Londres dizia que sim. Paris dizia que não. A Alemanha ficava a meio. Resolvido o problema, incluindo o regresso da França à estrutura militar da Aliança, de onde De Gaulle a retirara, a tensão criada pela Guerra do Iraque, em 2003, levou a Aliança à sua crise mais dura de sempre. Sobreviveu. O mundo já deixara de ser um lugar tranquilo para as democracias, na sequência do 11 de Setembro, que mudou radicalmente a política externa da única superpotência, com consequências para o mundo inteiro. Em plena Primavera Árabe, a França e o Reino Unido voltam a unir-se para impedir o massacre da oposição a Kadhafi em Bengazi. Precisaram dos Estados Unidos para limpar o terreno e para manter a pressão dos bombardeamentos aéreo. As fraquezas militares ficaram de novo expostas. Cometeram um erro que que tinham evitado na Bósnia: derrubado o regime, vieram-se embora. Sabemos hoje em que estado está a Líbia. O conflito sírio já matou centenas de milhares de pessoas. Sete milhões são refugiados ou deslocados internos. Foram utilizadas armas químicas. Graças a Putin, Assad continua no poder, livre para aniquilar quem lhe apeteça. As opiniões públicas europeias, viradas sobre si mesmas e contra a vaga de refugiados desta guerra, pouca atenção prestam aos massacres. Os governos tentam fazer o mínimo possível. Donald Trump tem apenas uma ideia na cabeça: sair do Médio Oriente. A Europa não se quer render à destruição da ordem multilateral que os EUA construírem. Faz bem. Por quanto tempo e com que meios de “persuasão”?

3. Desde Saint-Malo, os meios para uma defesa comum europeia continuam, mais ou menos, na mesma. Franceses e britânicos entenderam-se finalmente sobre a compatibilidade entre uma capacidade própria e a NATO, mas, entretanto, o Reino Unido decidiu abandonar a União Europeia, afectando drasticamente a sua “capacidade autónoma”. A NATO continua a ser necessária à Europa, agora por uma nova razão: a Rússia de Putin. Muitos analistas escreveram, e com imensa razão, que o abandono do acordo nuclear com o Irão é a maior machadada na Aliança Atlântica desde o fim da Guerra Fria. Provavelmente. Só que, entretanto, o Presidente russo está a aplicar meticulosamente uma estratégia de longo prazo que ignora a lei internacional e que tem como objectivo recuperar as antigas zonas de influência da União Soviética, a que chama de “estrangeiro próximo”, numa lógica que, por vezes, é difícil aos europeus entenderem, de tal modo se situa num “outro mundo” cujo regresso as democracias europeias ainda têm dificuldade em aceitar. A crise ucraniana e a ocupação da Crimeia foram o acontecimento que provocou a mudança. Hoje, a NATO garante uma operação de vigilância permanente na fronteira dos Bálticos com a Rússia e na Polónia, cujo objectivo é dissuadir Putin de uma qualquer aventura. Os Estados Unidos estão lá. Decorre na Roménia um exercício naval da Aliança no Mar Negro, que inclui os EUA. A Europa não está em condições de dispensar o Artigo 5.º do Tratado de Washington.

4. A tensão entre as duas margens do Atlântico, que tem sido permanente desde que Trump entrou na Casa Branca, aumentou agora dramaticamente. No Irão, Trump ignorou totalmente os aliados europeus, apesar da boa-vontade demonstrada para encontrar um terreno comum. O acordo não é perfeito, mas travou o programa nuclear militar iraniano – o seu principal objectivo. O futuro do Médio Oriente não é agradável de contemplar. Está longe dos EUA mas demasiado perto da Europa. O que pode fazer a União? Pouca coisa. Não dispõe da capacidade militar que lhe permita dar garantias ao regime, que se assemelhem às dos EUA. A sua economia é forte, mas não vai ser fácil contrariar o clima de desconfiança criado pela retirada americana. O que pode oferecer aos moderados chegará para impedir os radicais de regressarem à corrida nuclear? É uma grande interrogação.

5. Merkel costuma dizer que a Europa representa 7 por cento da população mundial, 20 por cento da riqueza produzida no mundo e 50 por cento dos gastos em apoio social à escala global. Não se imagina que nenhum governo europeu queira desmantelar parte do seu modelo social para investir na defesa e, ao mesmo tempo, manter os défices a zero. Por outras palavras, dispensar os EUA continua a ser um sonho. Entre a América e a Rússia, os europeus não têm muitas opções. Devem fazer todos os esforços para tentar salvar o acordo. Mas devem também fazer o seu próprio “exame de consciência” sobre o que querem ser no mundo, de uma forma realista. Não podem passar mais 25 anos a assinar belas declarações sobre a defesa e permitir que fique quase tudo na mesma, como nos últimos 25.

A 10 de Maio, em Aachen (Aix-La-Chapelle), o Presidente francês recebeu o Prémio Carlos Magno, atribuído às personalidades que contribuem para manter o espírito europeu. Disse à chanceler que ainda não desistiu de reformar a Europa. Merkel disse que a Europa “já não pode confiar a sua protecção aos EUA”. Quando chegou da cimeira da NATO, no ano passado, foi mais cautelosa: a Europa tem de tomar o seu destino nas mãos, porque já não pode entregar a sua segurança aos EUA, “pelo menos não tanto como no passado”. O problema, escreve Philip Stephens no Financial Times, é que “a Alemanha tem contribuído muito pouco para criar as condições que tornem a União Europeia mais forte”. Nem no euro, nem na defesa.

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