A coisa em si, o seu oposto e tudo o que existe no meio

O sétimo álbum dos Beach House continua a sequência imaculada do duo de Baltimore. E aproxima-os (é da idade) de "um sítio mais metafísico, onde se compreende a vida de uma maneira mais profunda, mais pesada", diz ao Ípsilon Alex Scally, meses antes do regresso a Portugal para mais dois concertos.

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SHAWN BRACKBILL

Poucos dias antes da data de lançamento de 7, o novo álbum dos Beach House, apanhamos Alex Scally, o co-compositor e multi-instrumentista do duo que partilha com Victoria Legrand, na recta final de uma digressão pelos territórios mais a sul dos Estados Unidos. Num quarto de hotel em Amarillo, Texas, interrompe o livro que estava a ler para nos falar deste novo trabalho, que esteve em gestação ao longo dos últimos três anos.

“Não fizemos nada de mais. Essencialmente houve muito tempo interno, por oposição a tempo externo. Há bastante gente que viaja, ou se muda para um sítio novo ou para uma cidade grande. Penso que para nós foi o oposto, sempre em Baltimore, a transformar o nosso espaço de ensaios num local de gravações, e num sítio onde podíamos aplicar a nossa criatividade.”

Pergunto que tipo que questões recorrentes andavam pela mente de Alex e Victoria durante esse período e subitamente o Alex que fui conhecendo ao longo da última década e picos, inteligente, rápido a reagir e a cruzar informação, acorda para a conversa. “Penso que como muita gente hoje em dia nós partilhamos uma obsessão constante de tentar compreender como a tecnologia está a mudar a raça humana ou a matriz base da realidade. Muitas vezes temos a cabeça a pairar por aí. E para além disso as pessoas têm de ficar mais velhas. Tenho reparado entre pares e outras pessoas que foram envelhecendo antes de mim que [com a idade] há uma aproximação a um sítio mais metafísico, onde se compreende a vida de uma maneira mais profunda, mais pesada.”

E continua (o raciocínio é longo). “A tecnologia está a introduzir um nível louco de caos no mundo. Penso que uma coisa de que os humanos realmente precisam é de terem histórias comuns, ou canções comuns. Todos existimos individualmente mas precisamos de estar socialmente ligados através destas coisas partilhadas. Há esse sentimento incrível que o desporto consegue atingir. Cada pessoa num sítio pode partilhar um sentimento por alguns segundos, e todos os credos, idades, raças… há um sentimento selvagem que pode acontecer quando todos o conseguimos sentir ao mesmo tempo, e penso que isso está muito ligado ao nosso sucesso enquanto espécie. Mas a tecnologia, a Internet, os telefones, o elemento capitalista da coisa, em que as pessoas acabam por amplificar os elementos individualistas dos conteúdos das suas vidas… é uma nova cultura baseada no indivíduo.” Na televisão, por exemplo, área em que se instalou todo o um novo paradigma de entretenimento costumizado: "Vi no outro dia que a Netflix vai lançar 800 séries e especiais no próximo ano. Todo o assunto tornou-se eles adaptarem os programas aos teus desejos específicos: 'gosto de romances com vampiros', 'então toma lá os teus romances com vampiros'. De certa forma, é uma fronteira nova entusiasmante, mas por outro lado estamos a perder a nossa informação partilhada, está mais difícil ver a verdade e o caos está a intensificar-se. Os nossos limiares de atenção estão a ser levados ao limite, e um dos sentimentos mais presentes tem sido que o caos entrou nas nossas mentes. Sinto-o como electricidade estática por todo o lado.”

Doze anos depois de lançarem o seu primeiro disco de longa-duração, e já tendo feito por volta de uma centena de canções nesta altura do campeonato, este raciocínio do Alex é coerente com uma das virtudes mais impressionantes dos Beach House. É difícil lembrar muitos outros trabalhos na música das últimas décadas em que haja tantas e tão boas melodias, todas elas distintas (e muitas delas hímnicas), que parecem ressoar de uma maneira tão universalista como as dos Beach House (até o Pulitzer Kendrick Lamar cantou por cima de um sample do duo no seu álbum de estreia).

“É muito complicado, mas nem tudo [aquilo de que falei] é negativo. Uma das coisas positivas é que há tantas vozes diferentes a serem ouvidas e trazidas à tona. Isso é óptimo, faz parte do pacote, e está a criar algumas mudanças realmente positivas. Não diria que o caos é necessariamente algo negativo, é só um sentimento, um sentimento de lá do fundo. Mas o caos pode ser divertido.”

É uma ambivalência que também está nas letras. “Como sempre, a Victoria escreve num estilo muito abstracto. Penso que aqui há muitas ruminações, tentativas de perceber várias emoções de diferentes maneiras, à volta deste pico de escuridão-luz em que estamos agora. Ficar mais velho tem muito que ver com aceitar os contratos pesados da vida. Same old, same old. Ao mesmo tempo que perdemos a nossa força e a nossa vitalidade, ganhamos um tipo incrível de compreensão [das coisas]. É uma dicotomia doida. Estas ligações polares estão por todo o lado e penso que nós os dois somos fascinados por elas.”

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A discografia dos Beach House de Alex Scally e Victoria Legrand é já um dos grandes corpos de trabalho da canção norte-americana deste século SHAWN BRACKBILL

Mas há outras questões em jogo neste 7, explica: “A Victoria é obcecada por várias aspectos da feminilidade, e isso vem muito cá para fora nas letras. Explora-se muito a ideia de uma tragédia bonita. [Em faixas como] Drunk in L.A. ou Woman of the year há uma personagem que se está a quebrar.” Quebrar como? “Por causa do peso esmagador do que a sociedade decide acerca de ti. A sociedade faz uma coisa louca a uma pessoa linda, a uma mulher linda. A sociedade faz coisas loucas a quem quer que fique debaixo de um holofote, e nós vemo-lo a toda a hora. Elevamos estas pessoas até posições insanas e vemo-las a desfazerem-se.” Não as defendemos… de todo. “Não, não. E não é nada de biográfico, a nossa abordagem é mais uma perspectiva jornalística. Ver isto a acontecer em ciclos, uma e outra vez, no fundo desde o nascimento da cultura pop mais intensa, nos anos 50, 60. Essas estrelas, a forma como as temos tratado, é tudo tão estranho que se torna fascinante.” As narrativas mediáticas estão viciadas na repetição desse arco narrativo? “Sim, e é fascinante tentar perceber o que isso significa enquanto sociedade, o porquê de o fazermos, e o que esse sentimento é. As letras deste disco abordam isso, de uma maneira abstracta. A Victoria tende a escrever de uma forma muito aberta. Ela permite que os pensamento dela cheguem às letras mas não as fecha numa caixa, para que quem ouve possa embrulhá-las à volta dos seus próprios pensamentos.” 

O sétimo

7 é um título ao qual pretenderam escapar várias vezes, mas o número continuava a puxá-los de volta. Uma e outra vez, de demasiadas maneiras para que as possamos enumerar aqui. “Como em tantas outras coisas, quando algo se faz acontecer nós deixamo-nos ir.”

Preparado durante dois anos e gravado ao longo de um terceiro, foi produzido pelo lendário Pete Kember, co-fundador dos Spacemen 3, heteronímico através dos seus projectos Spectrum e Experimental Audio Research, ou do nome Sonic Boom. Para além de ter passado os últimos anos a apanhar sol e o vento atlântico de Sintra, Kember fez importante trabalho de estúdio com outro expatriado anglo-saxónico, Panda Bear, e deixa aqui uma impressão digital bem visível no estupendo e colaborativo trabalho ao nível do desenho de som, das escolhas de instrumentação e das texturas.

“Estávamos um pouco viciados [a nível do trabalho de estúdio]. Assim que o contactámos pareceu-nos imediatamente alguém com quem nos daríamos bem rapidamente, e quando o conhecemos sentimos que ele era feito do mesmo que nós. Há algo nele que é muito Baltimore. É alguém que não segue regras, faz as coisas do jeito dele, como bem lhe apetece. Teve uma filosofia muito anti-cartilha no estúdio, que era o que procurávamos", diz Alex Scally, enfatizando como os Beach House se deram bem com "a criatividade enorme" e "o campo de energia" deste produtor "inteligente", que "sabe muito, já viu muito, já fez muitas coisas fixes". "Nós temos ideias bastante fixas sobre como fazer as coisas. Então ele ofereceu conselhos e sugestões de uma maneira perfeita. Muitos pequenos apontamentos que ajudaram as canções a elevarem-se inconscientemente.”

Destacam-se em 7 os timbres diferentes, não só de canção para canção dentro do álbum, mas por comparação com a discografia anterior dos Beach House. “Parte disso foi trabalho dele, mas outra parte tem a ver com o facto de nos termos interessado por novos instrumentos que fomos encontrando. Estávamos a fazer a nossa cena mas de alguma forma sentimo-la revigorada”, diz Alex Scally. A plasticidade sonora do disco está totalmente em sintonia com a capa do álbum – a preto, a branco (e todos os cinzas), com todas as cores do arco-íris a brilharem vindas de sítios e momentos imprevisíveis.

De todos os álbuns dos Beach House, todos eles excepcionalmente consistentes do ponto de vista estético, este será o mais diverso, mantendo à mesma essa coesão. As melodias estão igualmente unificadoras, mas o desenho narrativo de cada canção está mais rico e refinado, desbravando evoluções harmónicas inesperadas dentro de uma linguagem que permanece muito própria. Para além de pormenores dos My Bloody Valentine, há aqui ecos dos primeiros Slowdive, detalhes (uma progressão de acordes aqui, uma guitarra Robert Frippiana ali) do Another Green World de Brian Eno, assim como dos Stereolab mais e menos vertiginosos, dos próprios Spacemen 3 de Kember, e ainda valsas melancólicas na tradição Mazzy Star/Mojave 3, desenhos de composição e alguns intervalos que lembram o homónimo e clássico álbum dos United States of America. As linhas de guitarra mais típicas de Alex Scally aparecem apenas aqui e ali, com grande economia, a maior parte do espaço ocupado por teclados, sintetizadores, várias caixas de ritmos diferentes, tudo com um verniz muito próprio, difícil de descrever. Ao nível do trabalho visual, continuam muito empenhados. Tal como a capa, também os vídeos (e haverá um para cada música no álbum) andarão à volta da temática de opostos que perpassa por todo este 7

Os Beach House regressam a Portugal para concertos em Setembro. Dia 25 no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e dia 26 no Teatro Sá da Bandeira, no Porto. Sempre óptimos e generosos em palco, levam daqui 11 temas maravilhosos, sobre a coisa em si, o seu oposto e tudo o que existe no meio, naquele que já é um dos grandes corpos de trabalho da canção norte-americana deste século.

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