Social-democracia, que trilho seguir?

Talvez a sombra de Marx ainda seja muito pesada, mas precisamos de olhar para a cultura, para o sistema político e para as mudanças tecnológicas e ambientais como tão ou mais importantes que a economia.

Pedro Nuno Santos, na meritória intenção de relançar o debate sobre o futuro da social-democracia, escolheu como homem de palha a “terceira via” e conseguiu, deste modo, centrar a discussão no passado. Sobre este não é necessário acrescentar nada, mas não pode ficar sem registo o involuntário elogio à política energética de governos PS “terceira via” (1999-2002 e 2005-2009) considerando que a ela se deverá voltar!

E, sim, a pergunta é: como vamos construir o futuro da social-democracia? Será que basta reverter os excessos liberalizadores e repensar o papel do Estado na economia?

Claro que o crescimento das desigualdades no rendimento afeta a coesão social. Claro que a deslocação da manufactura para a China e arredores reduz as opções de trabalho à área dos serviços, onde os salários estão esmagados.

Talvez a sombra de Marx ainda seja muito pesada, mas precisamos de olhar para a cultura, para o sistema político e para as mudanças tecnológicas e ambientais como tão ou mais importantes que a economia.

Vivemos numa sociedade cada vez mais fragmentada, social, cultural e politicamente. Não são só as redes sociais, não são só os 200 canais de televisão e o “streaming”. São as diversas tribos cada vez mais estanques e agressivas para os estranhos. Veja-se o que se passa no mundo do futebol, apesar da selecção nacional ainda funcionar como agregador social, o comportamento dos dirigentes dos clubes tende a tornar “aceitáveis” condutas criminosas (de colarinho branco ou azul) e hoje ser difícil, senão impossível, amigos de clubes diferentes irem juntos ao futebol.

A crise do sistema político “democrático-aberto-ocidental” está, agora, bem expressa e atinge todos os partidos-âncora deste sistema. Mas falta, para além de algum consenso sobre as causas, acertar no remédio. Se, como julgo, na raiz da crise está a descrença quase total dos cidadãos nas instituições públicas, agravada pela forma como foi gerida a Grande Recessão, o trabalho de recuperação da honorabilidade dos partidos, do Parlamento, dos Tribunais e da Administração é uma tarefa hercúlea. Por alguma razão a velha máxima “o Estado é uma pessoa de bem” deixou de se ouvir, a não ser na negativa.

A vertigem da mudança tecnológica e a aceleração da robotização aumentam a ansiedade dos que ainda têm emprego e desmoralizam os que estão fora do mercado de trabalho, cujas habilitações parecem desactualizar-se ainda mais depressa que os “smartphones” que trazem no bolso.

Também a degradação dos ecossistemas e a mudança climática estão a pôr em causa, não apenas a qualidade de vida das populações e a fruição dos espaços naturais, mas a própria segurança física de pessoas e bens.

Por tudo isto, um programa social-democrata para as próximas décadas não se pode bastar com as ferramentas utilizadas, com notável mas irrepetível sucesso, pelo governo saído das eleições de 2015. O país e os portugueses estão hoje muito melhor – estatuto europeu e internacional recuperado, mais emprego, maior rendimento disponível, redução das desigualdades –, mas se o PS quiser continuar a contar com a confiança dos portugueses tem de, já na próxima legislatura, atacar os problemas elencados acima. Fazer de conta que eles não existem ou arrumá-los com meras declarações de circunstância é claramente insuficiente.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar