Cem Özdemir: “Temos o dever de evitar normalizar a AfD. Não é normal ser-se racista, antieuropeu ou leal a Putin”

Ex-líder dos Verdes alemães assume que combater a extrema-direita no Parlamento é a missão prioritária, em detrimento da oposição a mais uma coligação CDU/SPD. E chama os restantes partidos a juntarem-se-lhe.

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"Tenho filhos e não quero ter de lhes dizer que ‘lixámos’ a Europa", diz o deputado alemão Miguel Manso/PÚBLICO

Filho de imigrantes turcos de primeira geração, é um dos principais representantes da nova geração de políticos alemães e foi até há bem pouco tempo líder dos Verdes – afastou-se depois de fracassadas as negociações para a formação de um “Governo Jamaica”. Em Lisboa, para participar no ciclo de conferências Quo Vadis, Europa?, organizado pelo Goethe-Institut, e subordinado ao tema Populismo - Um Perigo Para a Europa?, Cem Özdemir fez mea culpa e assumiu fazer parte do grupo de políticos que não soube identificar os sintomas que originaram a onda populista que varreu o mundo ocidental. Quer, no entanto, emendar a mão: “Não quero ter de dizer aos meus filhos que ‘lixámos’ a Europa”.

Parece que nos últimos anos não falamos noutra coisa para além de populismo. Olhando para o crescimento e consolidação dos movimentos populistas nas democracias ocidentais, estaremos condenados a debater este tema eternamente?

É difícil prever o futuro mas, infelizmente, diria que os populistas vieram para ficar. E há que reconhecer que ainda que a maioria dos movimentos populistas europeus seja de direita, com forte componente racista, o populismo não é exclusivo dessa família política. Há casos de populismo anti-europeu de esquerda e baseado numa admiração por Vladimir Putin e por regimes autoritários noutras partes do mundo. O que é inacreditável. Depois da reunificação alemã, [Francis] Fukuyama disse que a era dos regimes autoritários chegara ao fim e anunciou o “Fim da História”. Mas olhando para o que se está a está a passar na Europa, temos mesmo de contar com eles.

O politólogo holandês Cas Mudde diz que o populismo é “a má consciência da democracia liberal”, por ser uma espécie de extremismo, promovido como a vontade de uma maioria. Parece-lhe acertado? 

Em alguns países essa maioria existe. Erdogan [Turquia], Putin [Rússia], Trump [EUA], Órban [Hungria] foram todos eleitos e têm apoios. Digo isto do ponto de vista de alguém que se enganou completamente nas suas expectativas em relação ao “Brexit” e à eleição de Trump. Pertenço ao grupo dos que quando visitam o Reino Unido só se encontram com os seus amigos liberais e que pensam que o país está ali representado. Mas há outro Reino Unido, que sempre ali esteve. O mesmo se aplica aos EUA. Quando perguntei aos meus amigos americanos se Trump iria obter a nomeação [para ser candidato do Partido Republicano] todos me disseram que era impossível, quando lhes perguntei se Trump iria ser Presidente, disseram-me que era impensável. Infelizmente, fomos todos um pouco arrogantes. Se olhar para minha sociedade, na Alemanha, eu represento um partido que tem uma base eleitoral com mais capacidade económica que a média. Será que ouvimos suficientemente os receios das pessoas? Claramente que não. A verdade é que Trump é hoje Presidente e está a cumprir as suas promessas. Isso é o mais extraordinário nestes populistas: cumprem o que prometem. Todos se promovem como a verdadeira voz dos cidadãos e da nação.

Que paralelismos há entre o caso alemão e outros pontos da Europa?

No Leste europeu a diferença entre a extrema-direita e o populismo de direita é reduzida. A Hungria é um exemplo claro. Mas em França, por exemplo, é diferente. Marine Le Pen percebeu que teve de modernizar a Frente Nacional e eliminar os estereótipos anti-semitas – ainda que saibamos quem são estas pessoas e como falam entre elas. Em países como a França, os populistas procuraram alargar as suas bases a novos grupos. O melhor exemplo disso é a Holanda. Tentaram chegar aos liberais, aos defensores de direitos humanos, às comunidades LGBT, às mulheres, aos judeus, dizendo que vem aí uma nova ameaça – muitas vezes ligada ao Islão – e que só eles podem defender tudo o que foi atingido no passado, em termos de modernização e direitos civis. A AfD está neste grupo e tem tentado fazer o mesmo na Alemanha. 

Como descreve os primeiros meses com a AfD no Bundestag

Eles mudaram tudo! Pela maneira como falam, pelos termos que usam, pela forma como se referem à História alemã. Olham para os outros partidos como uma unidade. Temos visões diferentes sobre a austeridade, alterações climáticas, etc... Mas comparados com eles, sim, somos mais próximos, porque acreditamos na democracia, todos sabemos quem foi Hitler, sabemos que não se pode defender o nazismo. Um partido que questiona a Europa, o Iluminismo, os princípios da Revolução Francesa, os direitos humanos – sobretudo na Alemanha, onde há uma visão clara sobre o que aconteceu entre 1933 e 1945 – não pode ser reconhecido como colega. Por isso é que defendo uma dupla estratégia para lidar com a AfD: ouvir as preocupações do eleitorado que votou neles e tentar reconquistá-lo; e combater duramente a liderança do partido. Sem compromissos, sem confraternização! Eles não são colegas. Temos o dever de evitar comportamentos que levem à sua normalização. Porque não é normal ser racista, não é normal ser antieuropeu, não é normal ser mais leal a Putin do que à Constituição alemã.

Mas essa postura parece implicar que dá mais prioridade a combater a AfD do que a fazer oposição ao Governo... 

Sim, claro!

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Acção de campanha da AfD Nelson Garrido/PÚBLICO/Arquivo

E esse foco é bom para o futuro dos Verdes, em termos de angariação de votos?

A minha posição é a de que devemos ser duros com estes partidos e não tratar os seus membros como verdadeiros deputados. E isso também se pode fazer, por exemplo, não votando nas propostas que apresentam, ainda que algumas possam ser iguais às nossas. Prefiro reescrever uma proposta do que votar numa da AfD.

Recentemente fiz um discurso contra a AfD, que já é uma das intervenções parlamentares mais vistas dos últimos anos. O que demonstra que existe uma profunda necessidade dentro da sociedade alemã de dizer “chega”. De dizer que não são eles que definem quem é e quem não é alemão. Face a isto devemos esquecer que democratas-cristãos, sociais-democratas, verdes, liberais ou membros do Die Linke são diferentes, porque no que toca à defesa da democracia liberal, da Europa e à noção de que não há desculpas para o que se passou antes de 1945, somos uma unidade. O maior elogio que recebi foi no estádio da minha equipa de futebol, o Estugarda, no dia do discurso. Foi uma daquelas situações que só nos acontecem uma vez na vida. A bancada levantou-se e aplaudiu-me de pé. Disseram-me que falei em nome deles. Escorreram-me lágrimas. A assistência normal num estádio de futebol na Alemanha não é a mesma que num encontro dos Verdes [risos]. Mas todos se uniram, como que a dizer: “Podemos ter diferenças aqui e ali, mas não queremos a AfD aqui, a Alemanha não é isto”. Não foi um elogio aos Verdes ou a mim, mas a eles próprios. E isto demonstra que há vontade em confrontar a extrema-direita.

Como vê a formação de mais uma coligação entre os dois principais partidos do sistema na Alemanha?

Está a fazer a pergunta à pessoa errada, já que eu liderava as negociações do meu partido para formarmos uma outra maioria que falhou [risos]. Não por nossa causa, mas porque os liberais se recusaram a formar uma coligação no último segundo. Eventualmente o SPD e a CDU tinham de formar uma coligação, era preciso um Governo, mesmo não sendo uma solução ideal para a Alemanha. A solução da ‘grande coligação’ foi sempre a excepção mas agora parece que é a regra. E isso não é bom. Até porque na primeira coligação tinham 80% dos lugares no Parlamento e agora só têm 53%. O tempo em que o SPD e CDU procuravam formar alianças com pequenos partidos passou à história. 

Acha que os partidos da “grande coligação” estão a cumprir essa ‘missão’ de combate à AfD? 

Agora sabem o que está verdadeiramente em jogo. Agora a AfD está no Parlamento, tal como noutros países europeus, onde até estão no Governo, como na Áustria e na Hungria. Por isso agora já não há desculpas, nem é necessária uma grande análise estratégica. Todos sabem como os populistas chegaram aos órgãos de poder, sabem que são apoiados por Putin, que são pró-Rússia, pró-autoritarismo, anti-Europa, anti-Ocidente. Por isso a postura da CDU/CSU e do SPD passa agora por chegar a uma fatia considerável dos eleitores da AfD e dizer-lhes que se têm preocupações sobre segurança, se querem saber o que se passa com o programa de acolhimento de refugiados, se querem conhecer os planos do Governo para criar condições para os refugiados voltarem aos seus países de origem, há abertura para debater estes assuntos e arranjar soluções.

E deve-se olhar com atenção para as zonas rurais da Alemanha, onde a AfD se fortaleceu tanto. Parece inacreditável quando falamos da quarta maior economia do mundo, mas ainda há regiões do país onde o único autocarro é o da escola. O que significa que onde não há escolas, não existem transportes públicos. Há zonas onde o acesso e a velocidade da Internet é pior do que em muitos países africanos. Isto precipita um isolamento brutal das pessoas. E é nestas regiões onde a AfD consegue ‘cheirar’ os medos da sociedade e dizer às pessoas que os outros partidos não querem saber delas e que gastaram todo o dinheiro em trazer refugiados. É por isso muito importante combater a injustiça, ter em consideração a dimensão social da política. Com esta estratégia, é possível reduzir o poder da AfD em 5% ou 10%.

Sendo filho de pais turcos, qual a sua posição sobre os que defendem a necessidade de assimilação dos imigrantes nas sociedades europeias?

A palavra ‘assimilação’ não é a mais indicada. Prefiro chamar a este processo ‘integração’ ou até ‘patriotismo constitucional’. A pergunta deve ser quais são as expectativas que temos para as pessoas que chegam ao nosso país? Em primeiro lugar, queremos que aprendam o idioma. Quem chega deve fazer esse esforço e o Estado deve ajudá-lo. Isto é um elemento novo que não foi pensado quando a geração dos meus pais aqui chegou para trabalhar [anos 50 e 60]. Nessa altura, a expectativa do Estado era que os trabalhadores turcos, portugueses, espanhóis, italianos, jugoslavos ou gregos viessem para ajudar na reconstrução da economia e, depois, regressassem aos seus países. Não era preciso falar bem alemão para trabalhar numa mina de carvão. Mas hoje os imigrantes precisam de saber a língua para trabalhar, para ajudar os filhos na escola, para defender os seus direitos, para entrar nos sindicatos.

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Precisamos de ensinar alemão, garantir empregos e integrar os refugiados na nossa sociedade democrática Miguel Manso/PÚBLICO

Em segundo lugar, temos de garantir que estas pessoas trabalham. Um dos grandes erros das políticas de acolhimento recentes foi a impossibilidade de dar trabalho a refugiados – o que deu azo aos argumentos de que os refugiados não querem trabalhar e vivem de subsídios. Mas agora temos escassez de mão-de-obra na Alemanha, temos de arranjar trabalho para eles.

Em terceiro lugar, temos de os integrar. Muitos dos refugiados e imigrantes que chegam à Alemanha não vêm de países democráticos. Vêm de regimes autoritários, de países em guerra, de locais onde o anti-semitismo é ideologia de Estado, de países onde a polícia é corrupta. Temos de educar as pessoas. A lógica do mercado baseada no mote “vem e faz o teu caminho” já não é correcta. Qualquer pessoa que queira viver na sociedade alemã não pode ser anti-semita ou não pode escolher as partes da História que lhe interessa. Precisamos de ensinar alemão, garantir empregos e integrar as pessoas na nossa sociedade democrática. Com isto, ninguém tem de abdicar da sua língua, da sua religião, da forma de vestir ou do que come, apenas tem de demonstrar que está disposto a adaptar-se à Constituição. 

Abandonou recentemente a liderança dos Verdes. Quais os seus planos para o futuro?

Neste momento estou muito empenhado em participar em todos os debates sobre o futuro da nossa sociedade. Sinto a necessidade de apoiar as vozes liberais da democracia e de a defender da ameaça iliberal. Tenho filhos e não quero ter de lhes dizer que ‘lixámos’ a Europa, que deixámos as democracias serem tomadas por loucos, que não pudemos fazer nada em relação às alterações climáticas. Não há desculpas. O conhecimento existe, a única coisa que temos de fazer é agir.

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