E a Eurovisão, também é impossível?

A escolha de uma canção é uma brincadeira inocente, e portanto não teve oposição. Na política europeia há interesses instalados e não há pressão cidadã suficiente para “criar” vontade política.

Por que raio podemos escolher a “melhor” canção da Eurovisão mas não os governantes na União Europeia? Sim, a pergunta parece absurda. A Eurovisão é só um entretenimento. Mas para quem acredita na máxima “sou humano e nada do que é humano me é alheio” - cunhada por Terêncio em 165 a.C. -, até um entretenimento pode servir de ensinamento. E, na verdade, a pergunta absurda destina-se a revelar outro absurdo, a saber, o dos argumentos contra a possibilidade de criar uma democracia europeia.

Vejamos. Há dois argumentos principais avançados por aqueles que não acreditam que seja possível criar uma democracia europeia: o argumento “essencialista” e o argumento “logístico”.

O argumento “essencialista" é curto e circular: é impossível haver democracia a nível europeu porque só é possível existir democracia no estado-nação. Se procurarmos saber mais, dir-nos-ão: só pode haver democracia ao nível do estado-nação porque só aí as pessoas partilham a mesma história e os mesmos interesses. Mas não é isso que a história nos diz: a democracia ateniense foi criada não porque os atenienses eram todos iguais mas porque havia em Atenas dez tribos diferentes. Os europeus todos (e israelitas, e australianos) que votaram em Salvador Sobral o ano passado não percebem nada de Portugal, de humor português ou da sensibilidade portuguesa, e no entanto votaram numa música cuja letra não entendiam. Para a democracia ser possível não é preciso mais homogeneidade do que o facto de sermos humanos e querermos participar numa decisão que nos afeta ou nos interessa.

Os argumentos logísticos contra a democracia europeia (ou qualquer democracia transnacional ou cosmopolita) são mais sérios. Quanto maior é a escala, mais difícil será organizar mecanismos de decisão nos quais toda a gente se sinta representada. Dizia Montesquieu, na primeira metade do século XVIII, que por essa razão uma república tinha de ser menor do que um reino e um reino menor do que um império. Mas isso foi antes de haver repúblicas grandes e até enormes, como a França e os EUA, que refutaram Montesquieu na prática. Hoje, a Índia é uma república com muito mais gente do que a Europa, com mais línguas e mais religiões — para não falar das diferenças de castas. Não há nada de inultrapassável no argumento logístico contra a democracia indiana, como não há contra a democracia europeia: qualquer dificuldade técnica pode ser resolvida com recurso à experiência passada e à experimentação futura.

Mas então porque é que podemos escolher a “melhor” canção europeia (incluindo Israel e a Austrália!) e não podemos escolher os governantes da União Europeia? Por uma razão muito simples de enunciar e nada simples de resolver: falta de vontade política. A escolha de uma canção é uma brincadeira inocente, e portanto não teve oposição. Na política europeia há interesses instalados e não há pressão cidadã suficiente para “criar” vontade política. Mas isso significa apenas que a criação da vontade política está ao alcance da pressão cidadã. A democracia europeia pode ser difícil, mas aqueles que dizem que ela é “impossível” são na verdade os melhores aliados dos interesses instalados.

A comparação vale o que vale, e é ela própria um entretenimento em forma de crónica. Mas já agora, que este fim de semana ganhe uma canção que não seja muito má. É que em democracia só há garantias de escolhas eticamente legítimas — mas nada nos garante que elas sejam esteticamente as melhores.

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