Já chega de voluntariado

Eventos como o Estoril Open ou ate´ mesmo o Rock in Rio fazem-me questionar sobre quem sera´ menos i´ntegro: aquele que explora com o aval da sua vi´tima ou aquele que escolhe ser explorado de livre vontade

Aaina Sharma/Unsplash
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Manuel sofre de curiosidade compulsiva e é autor do blogue Semtimenos
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Manuel sofre de curiosidade compulsiva e é autor do blogue Semtimenos

No seguimento da onda de vito´rias que o nosso pai´s tem vindo a surfar, na semana passada o tenista Joa~o Sousa sagrou-se vencedor do Estoril Open. Pela primeira vez, um portugue^s conseguiu ganhar esta prova. Ja´ na~o bastava o europeu de futebol e a Eurovisa~o, pelos vistos tambe´m somos craques no te´nis. Este deslumbramento e orgulho nacional sa~o o´ptimos para a nossa auto-estima enquanto povo. Mas, da mesma forma que ha´ males que ve^m por bem, tambe´m existem bens que ve^m por mal. Refiro-me a`s palavras proferidas pelo director do Estoril Open aquando do encerramento da prova. No seu discurso, foram enaltecidos os mais de 600 volunta´rios que trabalharam de forma incansa´vel, muitas vezes chegando a cumprir turnos de mais de 20 horas. Junta-se ainda o destaque que este senhor deu ao facto de serem “volunta´rios que esta~o aqui a trabalhar de borla”. Relembro que a entrada no Estoril Open na~o era gratuita, o valor dos bilhetes oscilava entre os 10 e os 90 euros. Sendo este um evento de cariz na~o social e que gera lucro, fara´ sentido contratar-se volunta´rios em vez de empregados?

Ao que parece, na~o e´ apenas no mundo corporativo que, muitas vezes, se agradece apenas com um obrigado ou com a famosa “palmadinha nas costas”. Desde quando e´ que se recompensa apenas com palavras algue´m que ajudou a gerar lucro? Infelizmente, desde sempre. Eventos como o Estoril Open ou ate´ mesmo o Rock in Rio fazem-me questionar sobre quem sera´ menos i´ntegro: aquele que explora com o aval da sua vi´tima ou aquele que escolhe ser explorado de livre vontade. O france^s Jean Paul Sartre, um dos grandes pensadores do se´culo XX, a determinada altura afirmou o seguinte: “Detesto as vi´timas quando elas respeitam os seus carrascos.” Por masoquismo ou ignora^ncia, muitos de no´s optam por compactuar com quem, por maldade ou ignora^ncia, decide explorar os outros.

Infelizmente, este e´ o tipo de “voluntariado” que muitos de no´s aceitam e, logo de seguida, fazemo-nos de vi´timas como se na~o pude´ssemos fazer rigorosamente nada para mudar esse estatuto. Cada um tem aquilo que merece e no´s, portugueses, na~o somos a excepc¸a~o. Vejamos o que se passa nas empresas. Todos somos culpados enquanto acharmos normal trabalhar dez ou mais horas quando apenas nos pagam oito. Ou enquanto continuarmos a perguntar ao nosso colega se vai almoc¸ar a casa so´ porque decidiu sair a horas. Quantos, enquanto colaboradores, criticavam o seu superior, mas quando atingiram aquele posto fizeram exactamente o mesmo ou pior? Eu conheci alguns.

Eu afirmo isto, mas contra mim falo. Houve momentos em que cheguei a entrar a`s 6h e a sair a`s 22 horas. Em determinadas alturas, tambe´m hesitei em sair a horas porque podia parecer mal. Levava trabalho para casa e, em vez de ter tempo para mim, punha-me a tentar finalizar uma to do list intermina´vel. Como e´ o´bvio, a empresa estava bastante satisfeita com o meu desempenho. Mas o melhor disto tudo e´ que, felizmente, consegui aprender. Pude chegar a` conclusa~o de que aquilo que estava a fazer na~o era o melhor para mim. Independentemente da fase da vida em que estamos, vamos sempre a tempo de tomar conscie^ncia da nossa situac¸a~o e tentar muda´-la. So´ numa sociedade doente e´ que se pode achar normal ter medo do chefe porque ele na~o inspira, intimida.

So´ numa sociedade debilitada podem existir pessoas que negligenciam a sua fami´lia e amigos em troca de um esgotamento. So´ numa sociedade desequilibrada pode acreditar-se que aqueles que querem trabalhar menos horas sa~o preguic¸osos. Vejamos o nosso comportamento quando a func¸a~o pu´blica lutou pelas 35h semanais de trabalho. A maioria de no´s, em vez de se juntar a` causa, preocupou-se mais em gastar a sua energia em garantir que estes trabalhadores na~o iriam trabalhar menos horas do que o privado. Acham normal? Pois, eu tambe´m na~o.

E voce^s, de que lado e´ que esta~o? Sa~o dos que exploram, sa~o explorados ou nenhum dos dois? Alinhar neste tipo de esquemas laborais so´ garante uma coisa: que os nossos filhos e netos tera~o de lidar com uma realidade que no´s opta´mos por perpetuar sem nada fazermos para a modificar. Na~o vale a pena dizer que na~o se pode fazer nada quando ainda nem dedicamos um minuto da nossa vida a pensar numa soluc¸a~o. Na~o vale a pena dizer que e´ impossi´vel so´ porque temos receio de tentar. Se o problema foi criado por no´s, ser humano, enta~o so´ no´s poderemos resolve^-lo. Se vai doer? E´ prova´vel. Vai custar? Talvez sim. Podemos conseguir? Na~o tenho du´vidas.

Vamos preocupar-nos em cada um fazer a sua parte porque, tal como Gandhi disse, se no´s na~o formos a mudanc¸a que queremos ver no mundo, enta~o nada mudara´.

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