Janelle Monáe não é pesadelo, é o american dream

Dirty Computer, magnífico terceiro álbum de Janelle Monáe, deixa as distopias e os andróides para trás. É um disco que promete luta na defesa das liberdades e reclama a América como terra para todos quantos têm sido tratados como excluídos (mulheres, negros, gays).

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Cindi Mayweather vive em Metrópolis, em 2719 (uma recombinação dos algarismos que compõem a data de estreia do filme homónimo de Fritz Lang), e dedica os seus dias a combater um fantasioso sistema de poder opressivo que procura subjugar os andróides. Fantasioso, mas não tanto que não permita estabelecer paralelos evidentes com o período da escravatura. Desde que surgiu no planeta musical com a edição do EP Metropolis (2007), Janelle Monáe tem-se socorrido de Cindi Mayweather para cantar desigualdades e injustiças sociais envolvendo minorias ou cidadãos desprotegidos. Cindi Mayweather foi uma espécie de disfarce de super-herói para que Janelle erguesse os punhos e se oferecesse à luta, projectando as desigualdades num futuro distópico mas dirigindo-se em permanência ao presente. A ficção científica e o afrofuturismo providenciaram-lhe o cenário perfeito para travar todas essas batalhas em ambientes em que as regras eram mais fáceis de moldar e as correcções nos padrões de vida mais passíveis de se concretizarem depois de um golpe bem arquitectado nas roldanas do tal sistema.

Acontece que o futuro foi ultrapassado pelo presente com a vitória presidencial de Barack Obama em 2008. E essa distopia, para a qual Janelle Monáe empurrava as suas inquietações, delegando em Cindi Mayweather bater-se lá mais adiante no tempo com as iniquidades de todos os dias, perdia algum do seu sentido quando, naquela mesma hora, acreditava a cantora, as tais doenças incrustadas na sociedade norte-americana tinham um opositor no mais elevado cargo político do país. A face mais visível disso mesmo foi a presença, em várias ocasiões, de Monáe na Casa Branca – Obama chegou a dizer que “ela tocou tantas vezes na Casa Branca que devia haver uma sala com o seu nome” –, tendo estado presente na after party que se seguiu à investidura do segundo mandato de Obama (2013) ou no churrasco do 4 de Julho de 2016 em que, juntamente com Kendrick Lamar, cantou os parabéns a uma das filhas do Presidente, Malia.

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Já depois da eleição de Donald Trump, Monáe havia de declarar na estreia de Elementos Secretosfilme em que interpretava uma das três matemáticas afro-americanas que trabalharam na NASA nos anos 60 e ajudaram ao sucesso da missão espacial que colocou o astronauta John Glenn no espaço, vincando o seu desejo activista de mexer ou reavivar a grande História, através das pequenas histórias – não admitir que “alguém pudesse reverter o legado criado pelo Presidente Obama”.

Este contexto ajuda a explicar a forma como nos chega agora Dirty Computer, o seu terceiro álbum. Em Crazy, classic life, ouve-se Obama a discursar a favor da igualdade entre homens e mulheres, antes de Janelle Monáe arrancar com uma das canções mais desavergonhadamente pop, o nome “Prince” tatuado em cada verso. É provavelmente o tema-súmula de todo o álbum, ao longo do qual Janelle vai atirando migalhas da sua postura pública (equilibrada em melodias irresistíveis): tanto numa possível crítica a Trump, quando declara “We don’t need another ruler/ we don’t need another fool”; fazendo um coming out cantado nos versos “I just wanna find a guy/ and I hope she loves me too”; apontando o dedo à perseguição policial dirigida contra a população negra, ao descrever a sua actuação como espelho de uma cultura de Rambo; mas sobretudo ao cantar no refrão “I am not America’s nightmareI am the American dream”, declaração inclusiva que reclama a liberdade de não lhe ser reduzida a cidadania em consequência do género, da raça, da orientação sexual ou do activismo político.

É um tema tão carregado de ideias – resumidas com tanta clareza e sem que o possível tom de manifesto se tenha de vestir de uma desnecessária austeridade musical – que facilmente se percebe o porquê de Janelle Monáe ter decidido guardar no armário as aventuras andróides de Cindi Mayweather e ter-se concentrado num mundo bem mais próximo e urgente do que Metrópolis (que alimentara os outros dois álbuns, ArchAndroid, de 2010, e Electric Lady, de 2013). Mesmo quando cita Wakanda, a fictícia terra-natal do super-herói Black Panther, cuja localização concreta varia de acordo com os vários volumes publicados pela Marvel, mas que se encontra na vizinhança de Uganda, Quénia, Somália, Etiópia e Sudão do Sul.

A banda-desenhada Black Panther volta a surgir na lista exaustiva das inspirações para cada tema de Dirty Computer que Janelle Monáe faz incluir no livreto do novo álbum. Mais concretamente, as Dora Milaje, as forças especiais femininas de Wakanda, que musculam o tom mais áspero de Django Jane, em que a cantora desembolsa um devastador registo de rap, ao longo do qual sugere àqueles que têm tentado fazer desaparecer as vozes em defesa dos mais variados direitos igualitários que se dediquem antes a espetar a sua bandeirinha noutro planeta à escolha. E Obama volta a surgir em Americans. O seu discurso A More Perfect Union serviu de mote para a voz que se ouve em fundo defendendo que aquela América em que finca os pés não será nunca a sua América “enquanto as mulheres não forem pagas o mesmo pelas mesmas funções, enquanto quem ama pessoas do mesmo sexo não puder ser quem é, enquanto os negros não puderem voltar para casa sem correrem o risco de ser baleados na cabeça numa operação policial, enquanto os brancos pobres não tiverem oportunidade de ser bem-sucedidos, enquanto latinos e latinas tiverem de fugir de muros”. É o discurso a que Janelle recorre para firmar a sua assinatura no país em que acredita.

O espírito de Prince

Janelle Monáe partilhou anteriormente a história de como cresceu aterrorizada por Prince, numa altura em que sonhava, por vezes, que ele a perseguia num fato púrpura. Não demorou muito para que esse terror se metamorfoseasse numa admiração intensa. Antes de mais, pela liberdade que o músico de Minneapolis transportava para as suas canções, sendo Sly Stone, Jimi Hendrix, James Brown e Chuck Berry num só homem. Janelle vai atrás desse exemplo, mas é sobretudo Prince que persegue, sem grande necessidade de o esconder – num artigo recente, o New York Times relatava a clara inspiração em Paisley Park que a música adoptou para a sua Wondaland, o espaço em Atlanta que lhe serve de base de operações, mas por onde circulam também os outros cúmplices que contratou para a sua editora, baptizada com o mesmo nome, à semelhança do que acontecia na mansão de Prince.

E depois há a confissão de que Prince foi consultado repetidas vezes acerca de todo o tipo de decisões, artísticas e não só, relativas a Dirty Computer. No plano estritamente musical, não há como escapar: Prince é uma presença constante em todo o disco. É impossível não ouvir Kiss em fundo enquanto se escuta Make me feel, é desnecessário pensar noutras guitarras e noutros teclados que não os de Roger Nelson e da sua New Power Generation, escarrapachados em temas como esse, mas também em Crazy, classic life, So afraid ou Americans. Em defesa de Monáe, no entanto, esclareça-se que se o espírito de Prince não pode ser sacudido de vários destes momentos, cada uma das suas canções justifica-se por si só e está longe de soar a imitação barata ou obra menor por comparação.

Ainda assim, a primeira grande surpresa de Dirty Computer chega com a participação do Beach Boy Brian Wilson no tema-título, começando por pintar de vozes celestiais um disco que, a partir daí, se torna bem mais terreno. E logo com um triângulo de canções a roçar-se vigorosamente na perfeição: Crazy, classic life, Take a byte e Screwed (por onde se descobre também a voz da actriz Zoë Kravitz, filha de Lenny). De forma certamente acidental, quase se poderia pressentir em Take a byte um refrão com carimbo do Damon Albarn mais pândego, enquanto Screwed não espantaria num disco de Lily Allen.

Reclamando por inteiro a liberdade de que diz ser feita – “I’m a free-ass motherfucker”, tem repetido em entrevistas –, Janelle salta do rap demolidor de Django Jane para o r&b suave de Pynk, em que junta a sua voz à de Grimes, num tema inspirado, entre outras coisas, no livro Vagina, de Naomi Wolf, e no “sorriso malicioso de Prince enquanto tocava órgão em Hot thing e observava Cat Glover deslizar pelo palco em Sign o’ the times”. Junte-se-lhe Make me feel e é outra parelha de canções sublimes.

Após um desvio para terrenos dos Neptunes para fazer a vontade a Pharell Williams, com quem partilha I got the juice – “If you try to grab my pussythis pussy grabs you back”, deixa como aviso –, Janelle não perde tempo e regressa ao seu terreno de eleição, rasando Beyoncé em I like that e entregando depois a narração do interlúdio Stevie’s dream a Stevie Wonder. São as paragens necessárias para chegarmos a Don’t judge me, ponto a partir do qual embarcamos num contínuo de aceleração em direcção à brilhante herança de Prince, rumo a um final (Americans) que começa em tom Madonna para depois adoptar a matriz principesca de Let’s go crazy. Antes de bater com a porta, Janelle despede-se com uma promessa/ameaça: “Don’t try to take my country/ I will defend my land”. Frase que é carapuça para servir a muitas cabeças. Especialmente cabeças oxigenadas, e familiarizadas com os corredores da actual Casa Branca.

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