Clara Menéres: ser mulher em liberdade total

Sempre séria, pouco loquaz, de uma irrepreensível ética sem desvios, a escultora não alterou nunca o seu nível de exigência plástica a partir do momento em que se converteu ao catolicismo, na década de 80.

“As pessoas são hipócritas. Não se importam com a estátua de uma mulher nua em mármore. Se for em terra e relva, gritam escandalizadas”, explicou-me um dia Clara Menéres (1943-2018). O comentário vinha na sequência da reacção da comunidade portuguesa em São Paulo no já distante ano de 1977, quando a escultora, incluída na representação nacional na bienal de arte que aí decorria, refez a escultura Mulher – Terra – Mãe, apresentada uns meses antes na Alternativa Zero, a importante colectiva comissariada por Ernesto de Sousa que, em Lisboa, reunira um núcleo de jovens artistas que até então tinham difícil acesso aos circuitos de apresentação e exposição artísticos.

Mulher – Terra – Mãe replicava o torso feminino de Courbet em A Origem do Mundo. Clara Menéres, que aliava a consciência política de género ao vocabulário explícito da pop internacional, não via razões para censurar, esconder, camuflar, embonecar a representação do sexo de uma mulher. Esta peça, que acolhia então os visitantes à entrada do pavilhão da Bienal de São Paulo, era um desafio não apenas aos códigos sociais que definiam a identidade feminina (e que a comunidade portuguesa em São Paulo defendia energicamente) como a uma história pessoal que sempre tratou de se construir sem olhar a estereótipos, fossem eles de esquerda ou de direita.

Se Mulher – Terra – Mãe é hoje considerada unanimemente como uma obra fundamental nas diversas linguagens artísticas que, em Portugal, se reclamam do feminismo, o que é certo é que ela continua a incomodar certos meios: em 2017, uma exposição no Museu do Chiado ambiciosamente intitulada Género na arte. Corpo, identidade, sexualidade, resistência, com curadoria da então directora Aida Rechena e de Teresa Furtado, omitia inexplicavelmente qualquer referência a Clara Menéres.

Esta não foi, contudo, a única obra de referência que criou. Nos mesmos anos, um conjunto escultórico com o título A menina Amélia que vive na Rua do Almada, que apresentou para a conclusão da sua licenciatura em 1968, ou um Relicário também dos anos 70, que é uma das principais obras de arte erótica referidas nas antologias da especialidade, precediam a obra maior sobre a Guerra Colonial, Jaz morto e arrefece: uma escultura realista de um soldado morto sobre um catafalco.

Sempre séria, pouco loquaz, de uma irrepreensível ética sem desvios, Clara Menéres, que nos últimos anos não dispensava vistosos chapéus sempre que aparecia em público, não alterou nunca o seu nível de exigência plástica a partir do momento em que se converteu ao catolicismo, pela década de 80. Passou então a cumprir diversas encomendas públicas, que se encontram espalhadas em Portugal e um pouco por todo o mundo.

Se a partir dessa altura a sua obra se distanciou dos meios artísticos mais activos, o que é certo é que ela denota sempre a opção pela liberdade total de trabalhar e de escolher a sua própria linguagem, que é o grande legado que a escultora também nos deixa.

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