Todo o mundo no isolamento de um casal em Tchernobil

Zvizdal, dos Berlin, leva para o palco do Teatro Maria Matos, em Lisboa, a história de um casal que resistiu mais de 25 anos numa zona contaminada pelo desastre nuclear de Tchernobil. É mais um espectáculo do FIMFA, para ver quinta e sexta-feira.

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Frederik Buyckx

Ao longo de vários anos, a jornalista francesa Cathy Blisson foi acompanhando as criações da companhia belga Berlin nas suas apresentações em Paris, escrevendo com regularidade para a revista Télérama artigos que acabaram por estabelecer uma relação entre as duas partes. Às tantas, Blisson abandonou a crítica, passou a dedicar-se à reportagem e começou a desenvolver trabalho dramatúrgico para alguns grupos de teatro. Foi ao juntar essas duas actividades que Blisson se deparou com uma história que lhe pareceu poder ter uma vida de palco através da linguagem dos Berlin. No final de um espectáculo em Paris, a jornalista encontrou-se com Bart Baele e Yves Degryse, e partilhou com os dois fotografias de Pétro e Nadia, um casal que ignorou a ordem de evacuação compulsiva emitida pelo Governo russo para Pripyat, uma das regiões mais afectadas pelo desastre nuclear de Tchernobil, em 1986, onde se encontra a aldeia de Zvizdal.

Foi por acidente que Cathy Blisson esbarrou nos protagonistas de Zvizdal – espectáculo que os Berlin apresentam quinta e sexta-feira no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no âmbito do Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas (FIMFA). Quando encontrou Pétro e Nadia, estava perdida com o tradutor que a acompanhava numa reportagem pelas paisagens desoladas e castigadas pelos severos efeitos radioactivos de Tchernobil. Só depois desafiaria os Berlin a embarcarem com ela num longo projecto que se estendeu por cinco anos, entre 2011 e 2016, com visitas recorrentes ao casal.

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BERLIN

Na primeira viagem que os Berlin fizeram para conhecer Pétro e Nadia, o casal estava já nos 84 anos e havia 25 que vivia isolado, sem electricidade nem água potável. Rapidamente os belgas perceberam que a abordagem à história daqueles dois sobreviventes teria de seguir uma narrativa em blocos, dividida pelas estações do ano, em resposta à forma como se relacionavam com o tempo. Essa relação passou também para os Berlin, que, respeitando o acordo de não invasão do espaço privado do casal, passaram centenas de horas na rua, à espera que Pétro e Nadia saíssem de casa, para só então lhes seguirem os passos, sem adulterar o ritmo de vida habitual nos dois.

No palco, enquanto um grande ecrã mostra as imagens de um documentário rodado com Pétro e Nadia, os Berlin contam a história do casal, atravessada pelas diferentes estações do ano, reconstruindo situações ou dialogando com o filme a partir das maquetas que representam a casa em Zvizdal. “Projectamos e editamos ao vivo, em confronto com as imagens do documentário, algo que tem que ver com a ideia de entrar e sair. E, ao examinarmos estas saídas deles, olhamos pelo microscópio para as suas vidas, algo que é muito estranho, porque é como se víssemos os nossos avós ao microscópio – estamos muito próximos e muito distantes”, explica ao PÚBLICO Yves Degryse

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Yves refere-se a Pétro e Nadia como avós, porque, ao contrário do que costuma acontecer na construção dos espectáculos dos Berlin, estes acabaram por se envolver emocionalmente com os sujeitos da sua pesquisa. Essa relação seria ainda ampliada por, na ausência de qualquer contacto nos períodos em que voltavam à Bélgica, cada regresso a Zvizdal se fazer sempre na esperança de ainda encontrarem os dois com vida. “Isso tornou o projecto muito difícil: a partir do momento em que decidimos parar de recolher material, dissemos adeus e sabíamos que era a última vez que os veríamos.”

A estrada ilegal

Nos primeiros segundos de Zvizdal, aquilo que ouvimos é o registo áudio que documenta as tentativas de obtenção de autorização oficial para aceder àquela zona proibida. “De início não foi mesmo possível”, conta Yves. “Por isso, durante dois anos e meio, como não recebemos autorização, entrámos por uma estrada ilegal. Ao fim de algum tempo conseguimos entrar com uma família, obtivemos a autorização através dela e, a partir daí, conhecendo o checkpoint, tudo se tornou muito mais fácil.” Foi o processo encontrado para desbloquear uma situação que chegou a complicar-se quando, ao fim de dois anos de tentativas, exaustos com a burocracia que lhes negava o acesso a uma região na qual entravam furtiva e regularmente por outras vias, resolveram chamar a atenção para esse facto, confrontando as autoridades com o absurdo das recusas sucessivas, quando há muito tempo chegavam por via não oficial a Zvizdal. Foi quanto bastou para que, no dia seguinte, a polícia os esperasse na estrada clandestina e lhes negasse a entrada na área de forma mais peremptória.

A situação acabou por resolver-se e os Berlin puderam circular com menos restrições, aprofundando a relação com o casal e adentrando-se na sua história. E uma das descobertas que fizeram foi a de que a razão para não terem seguido todos os outros habitantes na evacuação de uma das zonas mais contaminadas variava entre o receio de que, com as pilhagens, os seus bens se perdessem para sempre, o atraso na reclamação do apartamento disponibilizado pelo Governo (o que terá implicado a sua reatribuição a outra família) e a versão mais filosófica de que “as árvores velhas morrem se forem colocadas noutro lugar”, pelo que os corpos se adaptam a qualquer situação e aprendem a sobreviver.

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Pouco interessados nas vidas de quem os visitava, Pétro e Nadia seguiam os seus dias como se a presença dos forasteiros lhes fosse quase indiferente. Às tantas, a meio de uma entrevista, os belgas pescaram a palavra “Fukushima” no meio de uma algaraviada em ucraniano. E foi então que descobriram que Pétro tentava escutar o noticiário todos os dias num rádio a pilhas – que funcionava nalguns dias e se revelava inútil noutros. Perceberam então que a sua relação com o mundo passara a ser totalmente auditiva: reconheciam o nome Barack Obama como pertencente ao então Presidente dos Estados Unidos, mas seriam incapazes de o identificar numa fotografia.

Talvez o mais extraordinário do seu isolamento, arrisca Yves, seja o de haver ainda assim tanta vida e tanta experiência acumulada naquelas duas pessoas. Como se todo o mundo pudesse espelhar-se nas suas vidas. Como se, num corte com todo o exterior, Pétrio e Nadia tivessem passado a conter todas as existências do planeta dentro das suas.

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