O escritor inventa e mente. O leitor finge que acredita

Há um pacto subentendido entre leitor e escritor. Filipa Martins, João Tordo e António-Pedro Vasconcelos estiveram de acordo neste ponto, quando conversaram sobre “ficção e mentiras verdadeiras” no festival Livros a Oeste, na Lourinhã. “Mente-me que eu gosto.”

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O escritor João Tordo diz: “Quando parto para a página em branco, eu não estou em branco” miguel manso

Dizia o poeta brasileiro Manuel de Barros: “90% do que escrevo é invenção e só 10% é mentira.” Uma citação recuperada por Filipa Martins na noite de terça-feira, no painel “Ficção: Contar mentiras verdadeiras”, no Livros a Oeste, que decorre na Lourinhã até 12 de Maio. O escritor João Tordo e o cineasta António-Pedro Vasconcelos completavam a mesa, moderada por João Morales, o programador deste festival literário que se realiza há sete anos.

Para a autora de Na Memória dos Rouxinóis, “há um legado de realidade e de memórias que depois é transformado em ficção”. E conclui: “Quando escrevemos, estamos na ilusão da verdade!” Diz ainda que o maior elogio que lhe podem fazer é perguntarem-lhe se as personagens deste seu mais recente livro são reais. Tem acontecido, mesmo sendo uma obra “a tocar o realismo mágico, do universo sul-americano, em que estamos a falar de uma família de matemáticos e de um avô que deu ao neto não um nome de baptismo, mas um número: 7”. Apesar desta premissa, há leitores que perguntam se a história é verídica.

João Tordo revelou que muito do material que utiliza nas suas narrativas surgem de experiências reais que viveu. “Vou guardando as coisas comigo antes de começar a escrever.” Ou seja, “quando parto para a página em branco, eu não estou em branco”.

Mas diz também que a capacidade de “fazer transplantes” tem muito que ver com “a profissão de escritor”. Por isso conta que em Ensina-me a Voar Sobre os Telhados “levou” para o Japão os ilhéus das Cabras, que descobriu no arquipélago dos Açores há três anos. Pensou: “Eu quero pôr personagens naqueles ilhéus.” E já tinha esclarecido que o título do livro é uma alusão a um sonho recorrente que tinha durante a sua adolescência, em que saltava, a voar, pelos telhados.

Suspender a descrença

Para o realizador António-Pedro Vasconcelos, “a ficção tem de ser verosímil”. Mas fez um alerta: “Verosímil não é a mesma coisa que verdadeiro.” E invocou A Metamorfose, de Kafka. “Quando ele escreve que Gregor Samsa acordou e era uma barata, o leitor fica a saber em que universo é que entrou”, mas pode e deve reclamar “uma lógica verosímil, mesmo que não verdadeira”. E fala numa espécie de pacto entre leitor e escritor, que o moderador traduziu como “a voluntária suspensão da descrença”, a partir da expressão de Samuel Taylor Coleridge “suspension of disbelief".

O cineasta diz que vivemos “num mundo imperfeito, onde até se precisa de acreditar em Deus”. Precisamente para compensar isso, criou-se “um ser misterioso, com desígnios insondáveis”. Porque “a realidade não é convincente”. Logo, “o ficcionista, o escritor, o realizador criam personagens, como Deus, e julgam-nas”. Por isso diz: “Toda a grande ficção é o Grande Juízo Final. O escritor ou cineasta decide quem é que manda para o inferno e quem é que manda para o céu. Ou para o purgatório, que agora não existe, mas é pena.”

João Tordo não concorda totalmente: “Julgar as personagens parece-me ser um castigo demasiado pesado. Talvez seja mais observá-las a desenvolverem-se e colocá-las em situações suficientemente complicadas para ver como é que saem dali.” Foi o que fez no seu mais recente livro, apresentado horas antes na Biblioteca Municipal da Lourinhã.

Resumo da história: o filho de um governador japonês é castigado pelo pai por ter cometido um crime hediondo, sendo abandonado num ilhéu inóspito, “para morrer de fome, solidão e de sede” e só assim poder honrar a família. Tudo se passa nos tais ilhéus açorianos-japoneses.

Matar um crítico

Filipa Martins conta como escreveu o seu primeiro romance, que foi Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, “porque queria matar uma pessoa na realidade”. Não podendo, matou-o na ficção. Acrescenta ainda: “É um crítico bastante conhecido e na altura eu soube que ele teve um papel muito prejudicial na atribuição de um prémio. E eu, jovem, criei-lhe alguns anticorpos e precisei de criar um processo catártico para me libertar daquela irritação.”

Depois, conclui: “Parti para o Elogio do Passeio Público com o objectivo de matar um homem. E assassinei-o no final. Portanto, cumpri o meu objectivo. Ele deveria ser tão insignificante que não lhe dei nome. Do princípio ao fim, a personagem chama-se O Nosso Homem. Ao contrário do João Tordo, eu julguei bastante a minha personagem.” E termina, divertida, a descrição: “Foi um julgamento sumário. Pena capital.”

António-Pedro não tem dúvidas de que “a grande ficção é ou deve ser ao mesmo tempo reflexo e reflexão”. E há uma frase de Jean Cocteau que adora: “Os espelhos deveriam demorar um bocadinho mais antes de nos devolver a nossa imagem. Deviam reflectir um bocadinho mais...”

E se a ficção nos dá a ilusão, o cinema ainda mais. “Porque lida com pessoas reais, paisagens reais. Nós temos de acreditar naquilo que estamos a ver.” Certo é que “precisamos que nos contem histórias, pois é a ficção que nos permite adiar a morte, e é a Xerazade que descobre essa forma de ir adiando a morte”.

Subir ao monte Fuji

Quando da plateia se pergunta porque é que escrevem, João Tordo socorre-se de Murakami, num livro que leu em espanhol e cujo título pode ser traduzido como Do Que É Que eu Falo quando Falo de Escrever.

Ali, o autor explica a diferença entre um escritor e uma “pessoa normal”: “Dois homens chegam ao sopé do monte Fuji, olham para o monte e o homem normal diz: ‘Este monte é o mais grandioso e o mais belo e mais magnífico de todo o Japão. Estou convencido, não preciso de mais argumentos. O escritor diz: ‘Eu preciso de ir lá acima.”

Fala Tordo: “Esta diferença faz toda a diferença. Há este precisar de chegar ao topo para ficar convencido. É interessante como a inteligência de um escritor é uma inteligência parca quando comparada com a inteligência de um cientista ou de uma pessoa que consegue assegurar-se da realidade de modo imediato. Olhar para o monte Fuji e dizer: ‘Sim, senhor. Olho para o monte e não preciso de fazer essa travessia.’ E o escritor talvez por ter uma ‘inteligência lenta’, pelo menos é o que diz o Murakami e eu concordo absolutamente, precisa de ir lá acima.” Resultado: “Por isso é que os escritores escrevem livro atrás de livro e aquilo nunca mais acaba.”

O autor diz dar voz às vozes que estão dentro dele, numa espécie de “encarnação”. Por isso conta como durante vários meses “acordava e era uma mulher de 63 anos”, ao escrever O Paraíso Segundo Lars D. Mas procura perceber a origem dessas vozes. “Se não procurasse, era poeta.”

De início, “não sabia de onde é que vinha aquela voz”. Procurou na infância, encontrou mas teve dificuldade em começar a escrever. “Depois, foi fantástico.”

Alguns destes processos já tinham sido referidos na apresentação do livro durante a tarde e o autor pediu desculpa por se estar a repetir. Mas ninguém se importou. E era verdade.

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