A humanidade a rebentar nas canções das Señoritas

Ao segundo álbum, mantêm-se a tensão e o negrume, mas outras vidas alimentam as canções de Sandra Baptista e Mitó Mendes. As Saudades que Eu Não Tenho já anda na estrada: o primeiro concerto é esta quinta-feira no Porto, seguem-se vários outros pelo país fora.

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O último encontro com as Señoritas, por alturas do álbum de estreia Acho que É Meu Dever Não Gostar, terminara com uma espreitadela indiscreta às notas que Sandra Baptista regista com regularidade a partir de conversas ou frases soltas que ouve pela rua e que, despertando nela uma qualquer emoção imediata, acaba depois por transformar nas letras do duo. Naquele mesmo dia, tinha escrito um tema a partir das palavras cuspidas por uma desconhecida que castigara a vida declarando enfaticamente que “Deus é um filho da puta”.

Não é preciso esperar muito para, passados dois anos, se descobrir a música resultante dessa letra no novo disco das Señoritas, As Saudades que Eu Não Tenho, que tem esta quinta-feira, dia 10, a sua primeira apresentação ao vivo nos Maus Hábitos, no Porto, seguindo-se concertos em Aveiro (Mercado Negro, dia 18), Coimbra (Salão Brazil, dia 19), Lisboa (Lux, dia 24) e São João da Madeira (Paços da Cultura, dia 25). Bomba relógio abre o segundo álbum do projecto que Sandra Baptista (baixo, acordeão e letras) e Maria Antónia Mendes (voz e guitarra) montaram após a dissolução da sua anterior banda, A NaifaSeñoritas era, precisamente, o título de uma das canções mais populares do grupo. Avança-se pelos versos de Bomba relógio e vai-se descobrir essa frase transviada, agora na boca de Mitó (nome económico da vocalista). Com uma diferença. Deus é omitido, fica apenas como sugestão, e até a maiúscula que habitualmente acompanha qualquer referência a Ele se perde, posta como está no início do verso. Por isso, ouvimos agora “Tic tac tic tac/ Somos bomba-relógio/ Ele é um filho da puta/ Tic tac tic tac.”

Já no disco anterior se descobriam uma Avé Maria gravada pela vocalista na Procissão das Velas da Senhora da Saúde, a que assiste todos os anos, e um par de outras alusões mais ou menos irónicas aos preceitos religiosos. Mas há um crescendo que conduz a que a tal frase, colhida junto de uma outra vida, tenha saído ainda incólume da pena de Sandra Baptista – quando escreveu Bomba relógio, Deus era ainda chamado pelo nome, só mais tarde a letra foi suavizada. Se então o incluiu na canção com todas as letras, fê-lo para sublinhar o cada vez menor respeito que diz ter pela religião, consequência das “atrocidades que acontecem a toda a hora em nome de um deus”. “Respeito as religiões de cada um desde que isso não interfira com a dignidade do outro", pormenoriza. "E é por isso que digo, à boca cheia, que Deus é filho da puta, sem qualquer problema.” Até porque a letra de Bomba relógio é dessa relação inflamada com as crenças que trata.

Só que o pudor que Sandra não tem relativamente ao assunto, Mitó teve-o em dose suficiente para, depois de gravar o verso original, sentir tal desconforto que não foi capaz de se ouvir a proferir aquelas palavras. “Foi a única vez que isto me aconteceu na vida”, ressalva, confessando inclusivamente encarnar nas Senõritas “uma postura muito mais de actriz do que de cantora”. O certo é que Deus passou a um Ele que, isolado, pode até sugerir uma alusão à marcha cruel do tempo a caminhar sobre as nossas vidas. Em vez de ficar calada, lançar o verso para fora e engolir em seco, Mitó preferiu ser fiel àquela que ambas dizem ser a matriz essencial das Señoritas: a amizade entre as duas.

Isso e um fascínio pelo comportamento do ser humano como fonte inesgotável de inspiração. “Enquanto houver pessoas há Señoritas, é isso?”, pergunta Sandra a Mitó, pergunta aquela que é mais desconfiada e descrente na humanidade àquela que afirma divertir-se com as vidas alheias. Mitó responde: “Enquanto houver pessoas e vidas – porque se o Trump e o Putin explodirem com isto tudo acabam as Señoritas.” Ficarão, talvez, as baratas e os ratos.

“Quero ser um rato/ quero ser um rato de esgoto/ para me encontrar contigo/ neste desgosto.” Assim canta Mitó em Rato, canção de amor em que Sandra aborda “aquelas relações das quais as pessoas não conseguem sair”. Fala de uma espiral relacional, em que os dois se consomem mútua e lentamente, já não podem com a imagem, o cheiro e os sons do outro, e resvalam então com o amor para a sarjeta, fazendo coincidir “desgosto” e “esgoto”. As letras das Señoritas continuam, portanto, entregues às frustrações, às raivas e aos ressentimentos que a vocalista identificava como traço comum na escrita de Sandra e que lhe interessam explorar artisticamente. “São temas pouco explorados na música e continuam a ser o sumo da vida”, diz Mitó. “Acho o ser humano muito cómico – comove-me ao mesmo tempo que me diverte.”

Já Sandra, cada vez mais desesperançada na conduta humana – e, por isso, levantando outro tipo de sentidos nos versos de Rato em que declara, à vez, querer ser um rato, um gato e um cavalo –, confessa ter encontrado na escrita de letras para as Señoritas um escape. “Há pessoal que gasta dinheiro em terapia, nós fazemos discos”, ri-se. Mas não deixa de atirar que “devíamos ser todos muito simples; em vez disso somos altamente complexos e parece que andamos por cá só a dificultar a vida uns dos outros, como se a nossa fosse sempre a mais importante”. Daí que a crueza que se tornou a pedra de toque da música do duo desde o primeiro acorde ganhe aqui uma ressonância que se prende também com uma confessa “amargura”, relacionada com a constatação de que “as pessoas não estão a mudar – começam a ser mais egoístas, a ter egos muito grandes e auto-estimas muito pequeninas, e isso destrói”.

É também essa a imagem que atravessa Uma mulher só. Uma mulher – que podia ser um homem, não é isso que interessa – entregue à solidão e ao medo de estar presente no mundo. Preferindo rodear-se da tecnologia que a faz viajar pelo planeta a partir do lugar cavado do sofá, é alguém tão rodeado de si que já não sabe como se olhar de fora.

Banda a sério? Não

Se em As Saudades que Eu Não Tenho volta a haver essa descarga de frustrações, raivas e ressentimentos, há também um corpo quase estranho numa canção de amor, um amor sem doenças, que segue num embalo que podia ser dos braços de Lou Reed – referência oferecida por Sandra Baptista – chamado Vem comigo. É talvez a canção mais descarnada deste segundo álbum, voz docemente deixada a pairar sobre as notas de um baixo desapressado. Mas Mitó não resistiu a um pequeno exercício de sabotagem em causa própria. Antes que a canção terminasse dizendo “vem comigo ver o mar”, introduziu um “antes de tudo se acabar”, uma “assinatura Señoritas” que deixa à vista a tendência endémica das duas para a tensão e para um certo negrume. Sinal, talvez, de uma atitude punk traduzida em luta constante contra todas as formatações possíveis. Ou o reverso da medalha das existências vividas nas redes sociais virtuais, esse scroll infindável de “famílias perfeitas, filhos perfeitos, em que todos são lindos e fantásticos”, de preferência empunhando um copo de gin tónico diante de um pôr-do-sol que se faz passar por eterno.

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Nuno Carvalho

Este peso, que Mitó Mendes ousa dizer acompanhá-las “ainda do tempo de A Naifa”, surge em As Saudades… de uma forma menos sublinhada do que no disco de estreia. Em parte porque a presença mais recorrente de programações electrónicas – a cargo quase sempre de Samuel Palitos – dá uma toada dançável a temas como Rato (uma certa soltura que lembra os Três Tristes Tigres) e equilibra, em casos como Sem vida ou Tanto faz, a dureza das letras com um sopro de leveza. Do outro lado do espelho, no entanto, encontramos uma sonoridade pós-punk com o charme áspero das Raincoats, por exemplo, em Serve-te (mas também em Rato), ou uma sombra do Nick Cave dos Bad Seeds menos virulentos em Enlouqueci (três belíssimas canções).

Apesar de o processo de composição ter seguido, sem grandes desvios, o método aplicado em Acho que É Meu Dever Não Gostar, tentando captar as canções acabadas de parir, em toda a sua esplendorosa nudez, as participações exteriores ajudam a dar alguma robustez a uma música que, ainda assim, não se permite crescer demasiado. Até porque o limite que as duas traçam para qualquer contribuição externa é o de esta ser praticável, em cima de um palco, a quatro mãos (e pés, vá, para ajudar com os pedais que permitem controlar alguma maquinaria). Se deixassem de ser só as duas, aliás, as Señoritas dariam lugar a outro projecto. E depois de apresentar esta evidência, Sandra certifica-se junto de Mitó: “Queres fazer outro projecto?”. “Não”, responde a vocalista. “E queres ter uma banda a sério?”. “Não.”

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NUNO CARVALHO

Aquilo que as duas Señoritas não querem mesmo é prescindir do descomprometimento com que começaram a tocar juntas e a criar um reportório tão singular quanto magnético. Daí que os discos não sejam uma obrigação, e os concertos ainda o sejam menos. Passariam bem sem tocar ao vivo ou sem gravar durante dez anos. Mas acontece que, por enquanto, o telefone de Sandra Baptista continua a encher-se de notas relativas a vidas alheias, de frases recolhidas a gente magra, gorda, alta, baixa, feia ou bonita, em dias bons ou dias maus, acabada de ter os sisos arrancados, as contas bancárias rapadas ou ordens de despejo na caixa do correio.

Frases com que Sandra Baptista identifica por alguma razão e que depois de passarem pelos seus vários filtros interiores – “coração, esófago, fígado, por aí além”, descreve – são devolvidas ao mundo transformadas em letras que tentam mantê-la com os pés na terra e que confrontam os que as ouvem com as suas próprias vidas. As Señoritas preferem meter as mãos e a cabeça no lixo do que se saberem com os pés sobre o esterco mas fingindo ignorar esse facto e mantendo o olhar numa rosa distante.

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