A infância nua

A realizadora de 48 regressa aos arquivos para contar a infância dos filhos de um dirigente comunista durante o regime de Salazar, num ensaio intenso que prolonga o dever de memória.

Luz Obscura, Portugal, Documentário
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Susana de Sousa Dias, Obscure Light, realizadora de cinema
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O filme anterior de Susana de Sousa Dias, 48 (2009), é, sem meias palavras, um dos monumentos do documentário do século XXI – um daqueles objectos que cristalizam, para o bem e para o mal, uma identidade de realizadora e um modo de pensar o cinema como um dever de memória e perante a História, como um registo para o futuro. Tratava-se de revelar a “pequena história” que se esconde por trás da “grande História”, com o filme a mergulhar nas pessoas, na humanidade, por trás das fotografias de cadastros da PIDE.

Se falamos de 48 a propósito de Luz Obscura, é por duas razões. Primeira, a “sombra” daquele filme é coisa que vai sempre pesar na reacção a tudo o que a sua autora fará depois, para o bem e para o mal. Segunda, e independentemente disso, é inevitável olhar para Luz Obscura (que teve a sua estreia no IndieLisboa de 2017) como um “anexo” ou uma “adenda” a 48: prolonga a lógica formal do trabalho nos arquivos do regime de Salazar que Susana de Sousa Dias iniciara com Natureza Morta (2005), e o dever de memória de investigar e “reconstruir” a história que as fotografias não contam.

A partir de fotografias encontradas nos arquivos da PIDE, Luz Obscura traça a infância de Isabel, Álvaro e Rui Pato, filhos do dirigente do PCP Octávio Pato (1925-1999), que cresceram “na clandestinidade” – Isabel e Rui viveram inclusive algum tempo com a mãe em Caxias antes de serem entregues aos avós. Tal como anteriormente, há um “desfasamento” entre o tudo que as vozes dos irmãos contam e o pouco ou nada que as fotografias mostram, como se as imagens não fossem mais do que pequenas janelas que pouco deixam ver do que se esconde lá por trás, como se (nas palavras de um dos irmãos) o que importa seja não o que vemos mas o que ouvimos – “vivemos o que nos contam”.

Regressamos ao início: este filme que parece fazer zoom a uma das muitas histórias que 48 podia ter contado é, paradoxalmente, um projecto que lhe é muito anterior, e se “perde” na comparação não é por culpa própria. Susana de Sousa Dias não repetiu a fórmula austera de 48 – às fotografias de época juntam-se aqui “naturezas mortas”, algo tarkovskianas, filmadas em câmara lenta, e raras imagens contemporâneas dos três irmãos –, mas aqui esse jogo de materiais fílmicos é mais tentativo, mais difuso, reflectindo a busca de um equilíbrio delicado entre o registo para memória futura e o pudor de desvendar a intimidade de uma família. A intensidade de Luz Obscura é por isso de outra ordem: menos a repetição de uma fórmula, mais a visita a uma infância que nunca existiu verdadeiramente, perdida no tempo e impossível de recuperar. Não é um filme menor, é apenas um filme diferente.

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