A sociedade política local e o município do século XXI

No futuro próximo, a “sociedade política local” irá separar-se mais do poder autárquico que, por causa dessa autonomia, sofrerá mudanças substanciais.

Agora que está em discussão um novo pacote autárquico assente no princípio geral da descentralização político-administrativa, nenhum de nós espera que o município do século XXI receba essas novas atribuições e competências como se fosse, ainda, um município do século XX. Desde logo, no futuro próximo, a “sociedade política local” irá separar-se mais do poder autárquico que, por causa dessa autonomia, sofrerá mudanças substanciais. Ao mesmo tempo, no quadro da sociedade da informação e comunicação, o poder local será cada vez mais “distribuído, lateral e colaborativo”, porque acompanhará, em geometrias e ritmos muito variáveis, a difusão da cultura digital, da economia das redes e dos valores da sociedade colaborativa, a chamada “Sociedade CO”.

Os planos de mudança do poder local                    

O poder local do futuro estará distribuído entre a sociedade política local e a instituição-município. Neste contexto, o futuro do poder local acontecerá em três grandes planos. Em primeiro lugar, no plano tecnológico e técnico-administrativo, com mudanças incrementais que dependem antes de mais dos recursos financeiros disponíveis. Três grandes vetores afetarão a estrutura técnica e tecnológica da autarquia local tal como a conhecemos hoje: a desmaterialização, a desintermediação e a automação. Estas alterações funcionais modificarão substancialmente a estrutura técnico-administrativa e o capital social das autarquias locais.

Em segundo plano, o que poderíamos designar como o ecossistema comunitário que rodeia o poder local e que se reporta ao universo associativo e às redes colaborativas que ligam esse universo associativo, seja do lado da oferta municipal, mais convencional e frequente, ou do lado da procura, menos comum, mas mais necessário e urgente no contexto que se avizinha. Trata-se, aqui, de criar o complexo digital e colaborativo da administração local, interagindo mais com os cidadãos e as suas organizações, muito provavelmente em plataformas de outsourcing muito diversas e imaginativas. Aliás, estou em crer que a expressão autarquia local passará de moda por invocar conceitos mais conservadores como autarcia, hierarquia e autoridade. Para já, a única certeza que temos hoje é a de que haverá mais pluralidade e diversidade de poderes locais e que essa nova realidade, a sociedade política local, mudará gradualmente a face do poder autárquico tal como o conhecemos hoje. Em 2030, no final do próximo período de programação plurianual, o poder local estará irreconhecível. Para melhor.

O terceiro plano, que poderíamos designar de ecossistema institucional, é uma ampla zona de interação onde se realizam as principais transações entre níveis de governo e administração, o que a literatura consagrou com as designações de governação multiníveis e multi-escalaridade. Aqui, falamos de federalismo autárquico, de diversas modalidades de regionalização, inter-regionais, nacionais e transfronteiriças, das alterações da política europeia em matéria de coesão territorial e até de reforma do Estado-administração.

Em síntese, o futuro do poder local dependerá muito da organização da sociedade política local, em especial, o universo associativo e as redes colaborativas, em segundo lugar, da política interna do município e das relações entre back office e front office e, em terceiro, da articulação multiníveis de governo e administração e respetivas economias de aglomeração e externalidades positivas.

Os novos valores e o aprofundamento da democracia local     

Não podemos inverter os termos da equação municipal, isto é, sem um novo sistema de valores só haverá bricolage político-partidária. Os sinais, esses, já se anunciam. Do lado da “sociedade política local” e da “sociedade colaborativa”, a perspetiva do futuro abrangerá as seguintes promessas:

  • Cultivar os valores da “Sociedade CO”: o conhecimento, a comunidade, a colaboração, a comunicação, a comunhão, a confiança, a convivialidade, a congratulação;
  • Reequilibrar os territórios de geometria fixa com mais territórios-rede de geometria variável;
  • Dar prioridade à produção de capital social, isto é, a novas formações em “territórios cognitivos” capazes de aprender e empreender;
  • Dar prioridade a um associativismo de 2ª geração, mais do lado da procura e organizado em redor de plataformas interativas;
  • Dar prioridade à construção de “novas comunidades de trabalho” para lá do emprego que existe ou deixou de existir;
  • Promover a aproximação e a fusão progressivas dos sectores público, social e comunitário, criando o “quarto sector”, o sector dos “bens comuns colaborativos”;
  • Dar prioridade à formação de comunidades online, à crowd economy e sua interação com comunidades offline em lógicas de colaboração aberta e voluntária;
  • Ensaiar a criação de “moedas sociais complementares” no quarto sector em articulação com a moeda oficial;
  • Estar atento para impedir a eventual descontinuação das práticas e das redes colaborativas e criar mecanismos de continuidade;
  • Formar o movimento social da “Sociedade CO”, em nome de uma ética do cuidado e fomentar o “poder lateral dos pares” e de suas redes colaborativas.

Do lado do município propriamente dito, a democracia local pode ser organizada em redor de quatro eixos principais ou, se quisermos, de quatro “tipos democráticos”: a democracia representativa, a democracia participativa, a democracia associativa intermunicipal e a democracia colaborativa. Estas relações a quatro dimensões configuram uma nova ecologia política, institucional e sociológica do poder local do futuro. Há, obviamente, uma autonomia relativa do município face a este sistema de coordenadas, mas o essencial da política municipal será determinado, em boa medida, por esta matriz de coordenadas. Vejamos, esquematicamente, a contextualização destas “quatro democracias”.

No quadro da democracia representativa, a prática corrente da administração autárquica remete-nos pararelações verticais para cima” em direção à administração regional e central. Aqui, as principais referências são: a reforma do Estado e a revisão constitucional, a regionalização e a lei-quadro da descentralização político-administrativa, reformas parcelares e sectoriais da administração pública desconcentrada.

No quadro da democracia participativa, a prática corrente da administração autárquica remete-nos para as “relações verticais para baixo” em direção aos cidadãos e grupos de interesses. Aqui, as principais referências são as seguintes: uma nova lei eleitoral de listas abertas, uma gestão participativa organizada em conselhos locais, mais democracia digital, plataformas tecnológicas, redes e comunidades online e vários tipos de consulta direta.

No quadro da democracia associativa, a prática corrente da administração autárquica remete-nos para as “relações horizontais inter pares” em direção à própria organização política local. Aqui, as principais referências são as seguintes: mais e melhor associativismo intermunicipal, um novo federalismo autárquico de 2º grau, comunidades intermunicipais, mais euro-cidades e euro-regiões no quadro transfronteiriço e europeu.

Por último, no quadro da democracia colaborativa, é a inovação municipal e as relações extra-territoriais que devem prevalecer. Aqui, as principais referências são as seguintes: as plataformas digitais e as redes sociais, os espaços de coworking e os tiers-lieux, os territórios-rede de geometria variável, os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT).

A partir do aprofundamento democrático desta tipologia de relações é possível imaginar um modelo de governança regional e multilocal muito mais estruturado e complexo, em busca, sobretudo, de mais inteligência coletiva territorial. O exemplo que se segue é um pequeno ensaio de aplicação à região e aos municípios do Algarve:

  • Conselho Executivo regional (formado pelos diretores sectoriais regionais);
  • Presidente do Conselho Executivo Regional equiparado a Secretário de Estado;
  • Estruturas de missão para as unidades territoriais do PROTAL;
  • Autarquia online para os serviços de rotina do município;
  • Conselhos Locais Participativos para os serviços comuns ou comunitários;
  • Autarquia de 2º grau para o upgrading de certos serviços coletivos;
  • Redes e arranjos colaborativos para os territórios-rede de geometria variável.

O paradigma da gestão no município do século XXI

Tudo o que já dissemos a este propósito contempla um município mais aberto, mais cosmopolita, mais conectado e mais colaborativo. Os tópicos que se seguem ilustram bem este novo paradigma da gestão municipal, completamente aberto à sociedade política local:

  1. Um município mais comunitário e federalista, com uniões de freguesias, associações de municípios e comunidades intermunicipais, praticando a governação multiníveis em múltiplas formas e modalidades de rescaling;
  2. Um município mais aberto e interativo em matéria de economia municipal, acertando com grupos de cidadãos uma nova crowd economy, isto é, práticas inovadoras de crowdsourcing, crowdfunding e crowdlearning e distinguindo entre serviços públicos e serviços ao público;
  3. Um município mais móvel e itinerante na prestação de serviços pessoais, inovando em matéria de serviços de mobilidade, transporte e bancos de tempo, tendo em vista a criação de uma genuína economia solidária, em especial, em benefício da população sénior do concelho;
  4. Um município muito mais verde em matéria de economia dos 4R (reduzir, reciclar, reparar e reutilizar) e muito mais eficiente em matéria de recursos ociosos criando uma “dinâmica economia colaborativa” no que diz respeito ao reaproveitamento destes recursos subutilizados;
  5. Um município muito mais virado para a economia criativa e cultural em tudo o que diz respeito à gestão de recursos intangíveis e simbólicos, isto é, uma verdadeira economia imaterial ao serviço da cultura;
  6. Um município muito mais polivalente, horizontal e interativo no que diz respeito à sua orgânica interna, que se traduzirá numa nova relação funcional entre o front-office e o back-office”, devidamente acompanhada de uma alteração substancial da estrutura dos seus colaboradores, isto é, do seu capital social;
  7. Um município cada vez mais peer to peer, com menos hierarquia e mais heterarquia, um verdadeiro “par inter pares”, por exemplo, em matéria de parcerias público-privadas mais inteligentes territorialmente, por exemplo na provisão de serviços ao público;
  8. Um município menos fiscalista e mais contratualista no plano da engenharia financeira, por exemplo, com um funding muito mais diversificado e imaginativo junto de grupos de interesse locais, regionais, nacionais e internacionais;
  9. Um município mais cristalino e transparente no que diz respeito à accountability municipal, isto é, com uma monitorização das políticas públicas e das contas públicas muito mais interativa e em tempo real;
  10. Um município com via verde jovem no domínio da economia digital, isto é, mais aberto e imaginativo para a sua população jovem, por via de diversas plataformas inteligentes que envolvam a escola e suas extensões, desde simples espaços de coworking até estruturas de fablab e centros de investigação.

Nota Final

Como facilmente se observa, o município do século XXI interage permanentemente com a sociedade política local, confunde-se com ela, deixa de ser um “espaço de stocks” para passar a ser um “espaço de fluxos”, uma espécie de plataforma móvel em permanente remontagem. Por isso, o município do século XXI é uma estrutura de custos e geometria variáveis, orientada para tornar eficaz e efetiva a inteligência coletiva territorial, que será, doravante, a sua principal motivação e objetivo. No mesmo sentido, assistiremos ao crescimento do federalismo autárquico para eventos, projetos e serviços de maior envergadura. As relações exteriores serão, igualmente, um vetor fundamental da vida local e regional, nos planos artístico, desportivo e cultural, muito para lá das vulgares geminações. O município do século XXI será concebido, não de dentro para dentro, como até aqui, mas de dentro para fora e de fora para dentro. O município do século XXI será, definitivamente, um ator cosmopolita.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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