O anti-Sócrates

Nunca lhe vimos um vislumbre de exame de consciência moral, ou de consequências políticas, em relação a ter vivido anos na dependência financeira de um empresário.

Nunca a contradição entre José Sócrates e o filósofo grego com quem partilha o nome foi tão grande como agora. Sócrates, o filósofo grego, preferiu aceitar o resultado de um processo judicial que considerava injusto do que salvar-se desobedecendo ao tribunal. Sócrates, o político português, luta com todas as forças contra o processo judicial que o envolve mesmo que isso signifique ter “a sua própria verdade”, como disse uma vez António Costa. E eu defenderei sempre o direito do político português em não ser — neste aspecto — como o filósofo grego. Como ele diz frequentemente, é a justiça que tem de provar que ele é culpado.

Porquê, então, esta sensação de que é preciso tomar um banho por dentro da alma de cada vez que se lida com o caso José Sócrates? Porque ele foi primeiro-ministro e é intolerável considerar a possibilidade de serem sequer parcialmente verdadeiras acusações desta magnitude? Porque se entrevê que é assustador o que o seu caso nos indicia sobre o poder político e as teias que é possível estabelecer com o poder económico e empresarial no país? Porque o caso se prestará a aproveitamentos de vários géneros, inclusivamente permitindo disfarçar casos de corrupção noutras paragens? Porque outro tipo de aproveitamento tentará transformar crimes de políticos em criminalização das políticas, insinuando que quem esteve a favor das políticas de José Sócrates deveria ter tanta vergonha como se tivesse sido cúmplice dos seus possíveis crimes? Por terem ocorrido entorses aos direitos dos arguidos que nos devem preocupar tanto com possíveis culpados como alarmar com possíveis inocentes? Por isso tudo. E por mais uma coisa, que me permite voltar a Sócrates e ao seu homónimo da Grécia Antiga.

Há uma outra frase do filósofo Sócrates no seu julgamento que me vem à cabeça de cada vez que ouço ou leio José Sócrates. Dizia Sócrates, o antigo: “Uma vida que não é examinada não vale a pena ser vivida”. E isto sim é qualquer coisa que me choca: o facto de até hoje nunca ter visto da parte de José Sócrates o mínimo exame de consciência moral ou política sobre o seu comportamento. Não me refiro especificamente às acusações judiciais, mas a tudo aquilo que José Sócrates já confirmou ou não nega. Nunca lhe vimos um vislumbre de exame de consciência moral, ou de consequências políticas, em relação a ter vivido anos na dependência financeira de um empresário. Nunca lhe vimos um assomo de incómodo com a camada de ocultações e dissimulações, omissões e mentiras, que tal facto o obrigou a criar e gerir, juntos dos seus próximos, correligionários e concidadãos. A não ser que me tenha escapado, jamais ele demonstrou qualquer tipo de estranheza pelo facto, assumido pelo seu advogado, de preferir remessas de dinheiro vivo em vez de transferências bancárias. É isto normal, neste dia e hora, no atual estado de democracia? Não, não é. Mas para José Sócrates, e de acordo com a sua recusa em aceitar a necessidade de se examinar, tudo isto é normal, tudo foi bem feito, nada apresenta qualquer problema. E enquanto for assim, Sócrates é o seu pior inimigo.

A questão com José Sócrates é que ele pretende transportar para o plano moral e político o mesmo tipo de lógica que se aplica no plano judicial. Ora, estes planos funcionam de maneiras diferentes, que já o beneficiaram e que agora o prejudicam. Tal como muitos se desviaram para defender José Sócrates das acusações sucessivas como se cada acusação fosse uma cabala, também agora há quem se sinta traído antes de haver sentença transitada em julgado. A demissão de Sócrates do PS recusa esta realidade: ele não aceita que os seus agora ex-camaradas digam que “se os factos forem verdadeiros” se sentirão envergonhados. Porquê? Porque na lógica não-examinada de José Sócrates é ilegítimo as outras pessoas sequer considerarem que os factos que lhe são imputados possam ser verdadeiros — ao passo que é totalmente legítimo considerar normalíssimo todos os atos de José Sócrates que aos seus concidadãos causam estranheza.

É também por esta razão que este é, e vai continuar a ser, um caso que é tão moral e político quanto judicial. A nossa única esperança é procurarmos ser melhores do que o exemplo que nos é dado pelo nosso ex-primeiro-ministro. Ele parece não ter lições a tirar do seu caso; nós devemos tirar lições e aplicá-las. Num ambiente político e judicial difícil, onde é fácil errar, e onde já alguns abusos se cometeram, devemos usar este caso para nos examinarmos moralmente e decidirmos politicamente com rigor. Mudar as leis, exigir transparência, dar mais meios e exigência à justiça, investigar ao mais alto nível político a ligação entre política e negócios, acabar com as portas giratórias e recusar qualquer condescendência com o narcisismo carismático em política. Só sairá algo de bom do caso José Sócrates se o país — na política, na justiça, e na relação de confiança entre cidadania e governação — se souber examinar para ficar melhor.
 

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